Olhar Conceito

Quarta-feira, 01 de maio de 2024

Colunas

Histórias de dias passados e de outros que virão

Arquivo Pessoal

No meio de uma rua antiga da cidade, já solitária naquele horário, uma luz amarela emanava tristemente de um poste. A lua minguante acima iluminava com preguiça o que a luz fraca já cansada não conseguia alcançar. Muitos anos já lhe deram trabalho, muitos ventos por ela já correram, e quantas pessoas já não vira! Quantas ideias, loucuras, epifanias…! Ah, e o que dizer das recordações vivas que ainda ocorrem séculos depois dos fatos, como cenas de filme tão grandioso que cabe à história a incumbência honrosa de carregá-las para a eternidade… Os anos são duros, deixam marcas visíveis, fazem cortes tão profundos que deixam à vista entranhas que por vezes procuramos esconder…

Em sua luz amarela já fraca, começou a lembrar-se de algumas histórias marcantes. Trinta anos atrás fora palco da história amorosa de dois jovens, que ao momento deviam ter seus vinte anos. O rapaz conheceu a moça ali mesmo, naquela rua e sob aquele poste, quando por distração deixou cair os livros da faculdade e ela, por generosidade, ajudou-o a pegá-los. Algum tempo depois ela veio a descobrir, por palavras dele, ressalto, que a distração fora ela, e que nada mais o rapaz foi apto a fazer quando a viu, e assim os livros encontraram o chão, e eles, uma história juntos. Encontravam-se todos os dias sob a luz amarela do poste, como para recordar o primeiro momento que se viram.

Em outra época, vira também revoluções serem feitas. A um lado o exército marchava soberano, com fuzis armados e prontos para o que lhes fosse ordenado; a outro, rebeldes lutavam com o que encontravam pelo caminho, com armas roubadas ou rudemente fabricadas. Ambos dispunham-se um frente ao outro, encarando-se mutuamente à espera da primeira respiração falha, cujo momento de ataque seria oportuno e letal. Os olhos encaravam-se aflitos, medrosos, embora o corpo exigisse uma postura formal e dedicada de um lado, idealista e revolucionária de outro. Os olhos viam em seu oponente a imagem do marido e da esposa, dos filhos, dos amigos, dos familiares. Viam eles mesmos, parados, ali, prontos para receberem o tiro libertador, que definiria qual metade da moeda venceria. A luz amarelada assistia à tensão. Depois de alguns minutos de silêncio, cujo único som que se ouvia era a respiração pesada dos filhos da mesma nação, um homem de cada grupo destacou-se à frente, deixaram as armas ao chão, com calma, e andaram em direção ao outro, em uma insegurança do que viria a seguir. Desajeitados com a situação, deram-se as mãos e, com medo do que isso poderia significar, rebeldes e militares atiraram nos dois homens.



Certa vez um poeta louco – e que poeta não é? – abraçou-se ao poste e ficou olhando as estrelas, sob uma embriaguez formidável. Recitou alguns versos:

Ao longe, no céu,
Poderá estar
Querendo outro dia voltar?

Sonho com o cheiro
De seu corpo aqui
Comigo, nós perdidos.

Volte! Não se vá.
Mate outro, não a si,
Ou às estrelas, nós, enfim.


Às lembranças da voz do poeta, o tênue brilho amarelo sentiu-se confortável, e apagou-se sob a luz da poesia.

*Augusto Iglesias é estudante de Medicina e ora ou outra se atreve a escrever. No anseio de ambas as profissões, vai vivendo o dia a dia. Contato: augusto.iferreira@gmail.com


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