Olhar Conceito

Quinta-feira, 02 de maio de 2024

Colunas

As linhas são imaginárias e tentam delimitar, mas a vida é o caos e o acaso

Arquivo Pessoal

As linhas que dividem o mundo em partes iguais são linhas imaginárias. Meridianos. Trópicos. Paralelos. Meu quarto é torto. As paredes são tortas. Sem prumo. Desnível. Minha porta empenada é torta. A cama é torta. Durmo torto. Hoje canto meu canto num canto escuro do meu quarto. Um quarto de vida não é uma vida inteira. Mas ninguém vive uma vida inteira. Somos metades. Somos partes. Temos projetos. Temos trajetos. Dejetos. Desejos. Frustramo-nos com o próximo. O próximo se frustra conosco. Frustramos diante dos espelhos. Pedimos perdão de joelhos. Assim caminhamos e a vida continua. A vida é toda tua. A vida é toda nua. A vida está na rua. A vida está na Lua. Linda. Brilhante. Despida. Descabida. Toda turva. Toda curva. Mudamos de direção assim como o vento muda. Somos fases da Lua. Rotação e translação.

Quantas vezes caminhamos sem sair do lugar? Quantas vezes lucidamente nos perdemos mesmo sabendo o caminho de voltar? Perdemos a direção? Entramos em ruas na contra mão? Quantas vezes não confundimos os mapas? Os endereços? Os apreços? As pessoas que tanto amamos? Quantas vezes não sabemos a linha a ser seguida? Quem nunca perdeu o prumo mesmo sabendo do rumo? Quem nunca confundiu esquinas? Quem nunca se esqueceu dos ponteiros do relógio do próprio braço? Quem nunca se esqueceu do próprio traço? Quem nunca perdeu o compasso? Perdeu a linha? Se esqueceu do livro que leu? Do adeus que não deu? Quem nunca dormiu e perdeu um compromisso importante? Quem nunca esqueceu de telefonar?

Ninguém nunca vai acreditar que esqueci meu próprio nome. Ninguém nunca vai acreditar o porquê perdi meus compromissos. Já esqueci Nelson Rodrigues pensando que era Bukowski. Tem gente que já esqueceu até filho dentro do carro. Viciado que esqueceu cigarro. Quem nunca esqueceu de dar a carona? Quem nunca esqueceu da cama deitado numa poltrona? Quem nunca dormiu? Quem nunca saiu e não se despediu? Tem gente que já deixou o cão sem água. Seu melhor amigo esquecido. Casos omissos? Pessoas omissas? Quem vai acreditar como nos perdemos num caminho que tanto já andávamos? Quem vai acreditar porque paramos no meio do caminho? Quem vai entender a falta de carinho? Quem vai acreditar em nosso silêncio? Quem vai acreditar em nossas falhas? Já esqueci até meu próprio endereço. Nome de pai. Nome de mãe. Eu me pergunto: esqueci porque não amava? Quantas vezes falei que ia mas não fui? Quantas vezes fiz promessas a minha mãe e não cumpri? Quantas vezes perdemos uma festa que tanto gostaríamos de ir? Quantas vezes? Quem nunca deixou de rir? Quem nunca deixou de cair? Quem nunca deixou de partir? Quem nunca falhou?

Você não é o mesmo diante do espelho. Não certamente como pensava. Ninguém se imagina torto. Esquecemos que passamos o batom e já nos estranhamos de vermelho. Tentamos nos enxergar no espelho do banheiro. Nos enxergamos no outro. Tentamos nos espelhar em bons exemplos. Buscamos espelhos porque viver é solitário, já dizia Humberto Gessinger. Buscamos simetrias porque a vida é torta. Traçamos metas como se fossem igualdades de simetrias. Nossas linhas são imaginárias. Dois corpos e uma cara metade. A metade de um corpo é uma linha imaginária.

Traçamos uma linha dos pés a cabeça e nos dividimos em duas partes "iguais". Olhando de perto ninguém é normal, já dizia Freud. Fisicamente não existe linha perfeita. A mesma linha imaginária que divide um corpo em dois é a mesma linha que nos serve para saber que sempre haverá uma perna mais curta, um olho mais caído, uma narina mais aberta. Quem é destro tem a mão esquerda menor que a outra. Somos diferentes de um lado a outro. Em todos os lados. Um copo ao meio, uma linha tênue o divide ao meio. Um copo meio vazio ou meio cheio? Buscamos a simetria na arquitetura, nas catedrais e nas notas musicais. O bigode é torto assim como a orelha é torta. Pouco importa.

Um filho não é como o outro já dizia meu velho pai quando um dia na escola comparam seus três filhos. Ele abriu suas mãos e disse: meus filhos são como meus dedos, eles são parte de mim, mas nenhum é igual ao outro.

Somos iguais em nossas diferenças. Somos diferentes em nossas crenças. Vivemos no mesmo planeta em mundos diferentes. Cada um vive o seu mundo. Cada um vive suas fraquezas. Idealizamos simetrias que não existem. Buscamos fatos repetidos. Ouvimos a mesma música em lugares que nos lembram outros lugares e pessoas. Um quarto fechado é um lugar que nos faz recordar de mundos fora das paredes de concreto. O concreto de uma vida é sua fluidez. Decepcionamos pessoas que gostamos. Nos frustramos. Buscamos uma ordem. Queremos um sentido como se pudéssemos digitar uma vida em números em uma calculadora.

Há momentos que se perdem. Perdemos momentos e perdemos pessoas. Uma ordem. Um sentido. Um padrão. Uma reta. Uma meta. Um sonho. Um sono que não vem. Dormimos quando não devemos. Dormimos quando não podemos. Dormir enquanto a vida passa diante dos seus olhos. É como olhar para o espelho de olhos fechados. Podemos sonhar. Mas quando acordei era pesadelo. A vida é algo imensurável.

Tenho dificuldades em me explicar. Quando traço uma linha de explicação para meus erros sempre falho. Errar é humano! Somos todos tortos diante do espelho. Nossa tortura é querer simetrias que não existem. Não dá pra dividir a vida em duas metades iguais. Nós dividimos e sempre uma parte fica maior ou melhor que a outra. Assim como a maçã dividida, ninguém quer a parte podre. Hoje eu até entendo quem escolhe a melhor parte. Parte de nós é só a imagem do que há de bom. A vida tem maquiagens que esconde manchas de pele. Saltos que igualam pernas mais curtas. Plásticas que igualam orelhas e sorrisos. Mas nossa alma torta, religião e psicólogo nenhum irá corrigir. Estou tentando viver e aprender com meu espelho. Estou tentando me aceitar. Estou tentando me acertar. Me corrigir na alma e não no espelho. Não busco linhas retas. Não busco linhas simétricas. O que eu busco então? Apenas uma linha paralela.

Uma linha paralela não é igual. São linhas diferentes que ficam lado a lado mas caminham juntas. A humanidade seria mais humana se soubesse disso. Sem medir. Sem julgar. Sem calcular nossos erros. Podemos ser diferentes e estar ao lado. O lado bonito da vida é saber reconhecer a tortuosidade da alma daqueles que seguem rumos diferentes. Daqueles sujeitos tortos. Dos diferentes. Dos anormais. Somos retas imaginárias que se desfazem no horizonte daqueles que nos vêem de longe. Quem vê de perto enxerga falhas. Alguns compreendem. Outros rejeitam. Na linha da vida traçamos tudo certo. Mas somos incertos em nossos erros ou acertos.

Hoje eu acertei e escrevi um poema torto. Em linhas tortuosas. Torto em uma cadeira. Vou dormir torto. Me levantar torto. Ver minha cara torta cedo no espelho. Abrir a porta e caminhar para um novo dia. Um dia novo para errar novamente. Aceito que sou torto, mas quero novas linhas.

*Reinaldo Marchesi - É professor universitário, mestre em Educação pela UFMT (linha: Cultura, Memória e Teoria em Educação). Pesquisa no campo da Filosofia da Educação. Leitor de Nietzsche, Foucault, Deleuze e Derrida [Os malditos da filosofia]. Escreve todas às sextas-feiras na coluna Filosofia de Boteco

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