Olhar Conceito

Quinta-feira, 02 de maio de 2024

Colunas

Uma história sobre memórias, quebra-cabeças e um gigante de pedra

Arquivo Pessoal

Trago muita tristeza em minhas memórias, e como poderia não ser? A cada lembrança que retorna à tona da realidade, fatos se reconstroem nas cores vivas da visão, vozes tornam a ecoar ao  pé do ouvido, perfumes voltam a derramar lágrimas de saudade, e até mesmo aquele sorriso, aquele abraço, repetem-se uma vez mais. Tudo o que vivemos parece nos atormentar em tristeza a cada dia,  semana, mês, e nada conseguimos fazer a respeito. As lembranças vêm, elas possuem acesso livre  ao nosso consciente e à nossa efêmera vida.

Elas parecem ser mais significantes que os dias atuais. O presente é monótono, constante, crônico. Se algo há de acontecer, os sentimentos acerca disso são tão diluídos pelo tempo que se  tornam simplórios. As lembranças, por outro lado, quando ocorrem – e eis o primeiro diferencial: elas detêm o poder do controle sobre nós e não há muito o que podemos fazer contra isso – trazem consigo um conjunto de sentimentos de forma tão rápida e breve que nos sentimos sós, como se parte de nós fosse roubada pelo passado, deixando no presente um eu fragmentado, e cujos fragmentos já não completam inteiramente mais quem éramos. Pedaços ficam faltando, como se uma mão invisível roubasse algumas peças de um jogo de quebra-cabeças. O todo, o eu, passa a não fazer mais sentido – está desfigurado.

Desfigurado na alma. Perdemos a própria identidade para um passado que não voltará e que não irá repetir. Mesmo assim, relembramos, como que em uma brincadeira sem graça de nosso inconsciente, que se aproveita de nosso sofrimento. Não há nada pelo que possamos fazer, apenas assistimos a ele trabalhar como uma aranha, tecendo fios habilmente, formando teias fortes. Então nós caímos na armadilha cruel e somos envolvidos por um casulo de fios brancos do passado, até que chega um momento em que nos conformamos, passando a achar que não é de todo ruim, e pode até ser confortável.

Lugares passam a me assombrar. Lugares conhecidos, outrora visitados, em que histórias ocorreram e ficaram, trazem as lembranças que não desejamos. Ao primeiro momento em que o olho corre pelo pátio, pela calçada, por uma casa em que outra família já mora, milhares de memórias saltam pelas frestas do chão, pelas janelas entre-abertas, e voam em nossa direção, nos cercando e invadindo. É inevitável.

E então a solidão cresce. O sentimento de já não estar mais naquele tempo em que tudo parecia bom, com alguns defeitos que, olhando agora, eram até engraçados. A vontade de querer voltar no tempo para poder reviver aquela história é maior do que a força em querer continuar o dia de hoje. O passado se mostra um gigante de pedra, forte e indestrutível.

Ele fica parado, nos observando com seus grandes olhos redondos, procurando nos conhecer melhor, ou entender o que viramos. Com tudo o que já nos aconteceu em dias anteriores, acabamos nos transformando, e nem sempre percebemos. Olhar para o gigante é, portanto, reconhecer que há um sinal de mudança, e que não precisamos ter medo disso, mesmo que tenhamos a impressão de não estarmos mais completos e de não sermos mais quem éramos. Talvez tenha sido bom ter perdido algumas peças de nosso quebra-cabeça.

Abandonando o olhar daquela casa triste, retomando uma caminhada no presente e estando ainda melancólico, ainda consigo sentir um gigante de pedra com grandes olhos redondos me acompanhando, com todo o silêncio que ele não consegue fazer.

*Augusto Iglesias é estudante de Medicina e ora ou outra se atreve a escrever. No anseio de ambas as profissões, vai vivendo o dia a dia. Contato: augusto.iferreira@gmail.com

Comentários no Facebook

Sitevip Internet