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Quinta-feira, 02 de maio de 2024

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Fronteiras da liberdade: a nossa casa é o mundo do avesso

Arquivo Pessoal

A vida é muito curta para vivermos num lugar só. A vida é pequena demais para andarmos apenas os mesmos trechos. Viajar todas as férias para aquela mesma praia. Visitar sempre aquela mesma cidade. Não podemos perder tempo com coisas velhas. Velhas emoções e velhas paisagens. Prefiro coisas novas. Aves migratórias como andorinhas que fazem o Verão. Migrações e imigrações sempre me chamaram atenção. Todos os tipos de êxodos. Pessoas partidas e saídas. Todas as despedidas me emocionam. Quem se vai, sempre leva de nós um pouco daquilo que deixa de si. Saudades.

Mundo em mudança. Mundança. O mundo e sua dança.

As vidas nômades sempre me chamaram atenção: hippies, andarilhos, caixeiros viajantes, vendedores de rede, teatro mambembe, ciganos e artistas de circo. Pessoas que mudam de tempos em tempos. Surgem e de repente desaparecem do mapa. Na metade de minha expectativa de vida, hoje posso concluir, um homem feliz não é aquele possuidor de uma grande casa, mas aquele que consegue carregar sua casa nas costas. As pessoas possuidoras de menos coisas por opção, sempre são as mais felizes. Quem possui mais sempre é mais possuído! Estou cada vez mais certo disso. Tentando me libertar.

Pessoas compram imóveis e ficam imóveis. Presas. Uma palavra que diz por si mesma - imóvel (Parado, estagnado, fixo, estável, no mesmo lugar, imutável, etc). O emprego que era para te libertar, ele que te prende. Preso a compromissos o homem deixa de viajar e de mudar. Deixa de sonhar. Deixa de ver. Deixa de ter mudanças externas e internas.

Não quero nenhuma porção de terra! Não quero pedaço nenhum de teto! Não quero um emprego que me prenda. O que quero? Apenas ter a liberdade de levantar, pegar a mochila e, cair na estrada. Talvez por isso que depois de adulto nunca mais tive plantas, gatos ou cachorros comigo. Quem possui plantas, gatos e cachorros sempre tem o compromisso de dar alimento e água. Dar atenção se torna um tipo de obrigação voluntária. Sem vontade de obrigações, eu sigo. Sonho com tendas, barracas e mochilas. Coisas de gente desterritorializada. Desprendida. Desapegada. Sangue cigano se não me engano.

Antes não gostava de mudança de endereços, porque sempre precisava de várias caixas grandes. Com o tempo, cada vez mais minhas caixas foram diminuindo. De número e de tamanho. Comecei a doar quase tudo! Ainda não me desprendi dos meus livros. Queria apenas uma mochila, um par de tênis e algumas poucas roupas. Estou perto dessa meta. Estou perto de mais uma partida. Mais uma mudança para me mudar como pessoa e não apenas de endereço.

Um passo a frente e já estamos no mesmo lugar. Quando desumanamente nos tornamos sedentários? Acomodamos-nos num mesmo lugar. Num mesmo emprego. Quem nunca conheceu alguém que viveu e morreu num mesmo lugar? Ou no mesmo emprego? O filósofo Kant, por exemplo, nasceu, viveu e morreu em Königsberg (antiga Prússia), criou uma filosofia que invadiu o mundo que ele nunca conheceu. Kant nunca viajou. Diferentemente do filósofo francês Michel de Montaigne que viajou bastante e ensinava que para melhor saber dos lugares, é preciso viajar. Tem gente que sonha com grandes apartamentos e viagens de fim de ano. Confesso que meu grande sonho é uma mochila nas costas. E se for para ter uma casa, que seja no meio do mato ou na beira de uma praia deserta. A natureza tem o dom de mudar pessoas. Quem mora nesses lugares nem precisa viajar. Mas mesmo assim, uma mochila é um bom sinal de desprendimento para mim.

Não desejo habitar em condomínios de luxo. Casas com as mesmas cores. Não almejo seguranças artificiais. Não quero dividir minha vida em 120 parcelas sem juros para morar num mesmo lugar. Não quero viver escondido dentro de minha própria casa com suas grades e cercas elétricas. Entre essas casas e suas belas calçadas, prefiro as estradas. Quero dividir minha vida em 120 estradas. 120 paisagens. 120 caminhos diferentes. De 120 km/h para frente. 120 estações. 120 paradas. 120 saídas. 120 partidas. 120 chegadas. Um coração que bata mais de 120 vezes por minuto.

Mudar nunca é uma subtração negativa. Ao mudar você perde ganhando. Mudar significa perder. Desprender e desaprender. Deixar para trás opiniões é tão difícil quanto deixar pessoas. As convicções são cárceres, já dizia Nietzsche. Tenho me desprendido das ideias e lugares fixos. Opiniões fixas me fixam a uma ideia, não tenho gosto pela fixação. Os mesmos caminhos. As mesmas comidas. Um mesmo idioma. A mesma fisionomia de sempre. As mesmas roupas e tradições. Mesmas aparências. Permanecer no mesmo lugar tem lá suas vantagens, porém na maioria das vezes é muito mais entediante. Mesmos lugares. Mesmos lares. Mesmas pessoas. Mesmos assuntos. Permanecer no mesmo lugar ou ser o mesmo em lugares diferentes. Mudar é preciso. "Viajar é preciso, viver não!" Já dizia o lema da escola de navegadores de Sagres. Sem nada mudar, você passa pela vida e a vida não passa por você.

Quem não muda de lugar perde grandes oportunidades de novos horizontes. Novas águas. Um pôr de Sol novo a cada dia em um novo lugar. Descobri isso desde cedo mudando aos meus 3 anos de idade deixando familiares e origens de São Paulo para trás. De lá para cá, são mais de dez cidades diferentes que percorri o trecho. Várias cidades e estados.

Transeunte em alguns países eu vi o quanto meu mundo era pequeno diante da grandeza do planeta como um todo. Uma coisa é ouvir dizer, outra é viver. Saber que existem outros lugares é uma coisa, outra é ir até eles. Ásia, Europa e América Latina podem existir dentro de sua sala de estar na telinha de sua televisão. Nunca dentro de sua visão! Uma coisa é ver sem estar, outra é ver estando. Estive "assistindo" é diferente de estive "indo". Posso dizer que fui e vi por diferentes motivos.

Ver de perto outros lugares para além do meu próprio umbigo me fez outra pessoa. Outras fronteiras além dos meus olhos. Eu vi como é pequeno o lugar de onde vim. Vi como era pequeno dentro de mim. Vi como é pequeno um homem que não viaja para lugar nenhum. Conhecer novas culturas nos faz maiores. Saber que o mundo é maior que o quintal de nossa casa nos torna dez centímetros maiores que aquele que assiste o mundo de dentro de sua casa sentado confortavelmente em seu sofá todos os dias.

Mudar de canal não é o mesmo que atravessar a ponte. Água boa é a que se bebe na fonte.

*Reinaldo Marchesi - É professor universitário, mestre em Educação pela UFMT (linha: Cultura, Memória e Teoria em Educação). Pesquisa no campo da Filosofia da Educação. Leitor de Nietzsche, Foucault, Deleuze e Derrida [Os malditos da filosofia]. Escreve todas às sextas-feiras na coluna Filosofia de Boteco.

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