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Domingo, 05 de maio de 2024

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A grama do vizinho, sempre mais verde

Arquivo Pessoal

Se prender a uma ideia, a um formato, a um sonho é como se apegar à coisas que, tecnicamente, não estão lá. Mas estão. Não de maneira convencional, mas estão lá. Não são coisas palpáveis, mas é como a simbologia da fé: crer naquilo que não se vê mas há convicção de ser real. Todos nos prendemos nesse mesmo ponto – em certo ponto. Seja uma ideia que você gostaria de por em prática, um sonho muito sonhado mas nunca realizado, um projeto para sua vida bem arquitetado na mente, mas que não parece funcionar no mundo real.

Manter esse ostracismo mental, onde guardamos ideias, sonhos e projetos é como ter um lugar seguro, um refúgio para sua mente. É como se você a descansasse naquele breve espaço de tempo onde todo esse “universo paralelo” fizesse muito mais sentido do que a correria do dia-a-dia, os prazos, as frustrações, os enganos corriqueiros. Você pode até negar, mas todos temos essa válvula de escape, acionada no desespero. Sabe aquela coisa que faz você sufocar seus problemas no silêncio, para se sentir melhor? Exatamente isso.

Em A Rosa Púrpura do Cairo (1985) temos o reflexo do que é o ser humano quando está no ápice da sua frustração pessoal. Sua história não é uma regra que se aplica a todo mundo, mas creio toda lição ser válida – pois há vários aspectos que podem ser extraídos de qualquer contexto, inclusive neste. Aqui temos Cecília (Mia Farrow), um jovem mulher casada que enfrenta o período da Grande Depressão com a ajuda do cinema. Enquanto as coisas não vão nada bem em casa, sua mente parece desaparecer em uma realidade inigualável e irreal, dentro das telas de cinema. Frequentadora assídua e apaixonada pelo personagem Tom Baxter (do filme em cartaz A Rosa Púrpura do Cairo), ela sonha acordada – pensando na vida que nunca teve, mas sempre tomou para si como sua.



Suas idas frequentes ao cinema despertam Tom, impressionado com a fixação da jovem Cecília pelo filme. Esse impressionismo o faz querer conhece-la melhor, o levando a sair das telas em direção a ela, gerando uma confusão sem precedentes dentro e fora do filme. A atitude do personagem Tom Baxter (interpretado originalmente por Jeff Daniels, que assume o papel do ator Gil Shepherd na trama) desencadeia uma espécie de greve em diversos cinemas. Enquanto ele desbrava o mundo real desconhecido para si, a história de sua “subversão” atrai a atenção do elenco de seu filme, se estendendo a outros filmes onde personagens não se contentam com sua realidade estática na tela e querem o algo a mais disponível no mundo real.

O que vemos na comédia A Rosa Púrpura do Cairo é o tipo favorito do cineasta Woody Allen (que assina a direção e o roteiro). Conflitos psicológicos de um protagonista deveras perturbado, porém dentro da normalidade humana. Tudo fruto das próprias experiências de Woddy, o que ajuda a tornar seus filmes ainda mais reais. Ainda que em níveis diversos, é possível se enquadrar no seu mundinho, entender suas complicações e até vivenciar algumas. E a frustração é uma delas. Neste caso, temos dois destaques que agem de maneiras distintas mediante a inquietação por suas realidades. Enquanto o mundo real é triste e complexo demais para Cecília, o mundo estático e repetitivo do cinema é exaustivo demais para Tom. Aqui também encontramos duas simbologias para o termo liberdade: para Cecília, é poder viver uma certa felicidade plástica, frequente, sem grandes desníveis. Para Tom, é viver solto, podendo explorar algo que fuja de um roteiro programado onde existe uma festa, uma viagem, uma casa, um amor a conquistar.

Esses conflitos se entrelaçam na vida do quase casal, à medida que um não entende a frustração do outro, a julgando como quase sendo absurda. Exatamente como no lado de cá, no mundo real. Tantas vezes nos deparamos com realidades – aparentemente – impecáveis e temos dificuldade em compreender a frustração alheia. Em muitos casos, nunca a compreendemos como deveríamos. Mas é certo que todos nos escondemos dentro dela, ou apenas fugimos ao evitar bater de frente com aquilo que nos incomoda e nos deixa tão infeliz. Talvez não seja algo feito. Pode ser algo não feito, os famosos sonhos tão sonhados e não realizados, comentados logo mais.

É difícil acertar na primeira. Conseguir o trabalho ideal na primeira tentativa ou realizar seu grande sonho (profissional ou pessoal) logo após a formatura universitária. Os primeiros passos não costumam ser glamourosos, tão pouco geniais. São árduos, difíceis e em alguns casos aparentam afastar o “objeto de desejo” cada vez mais, mas são necessários na caminhada. E até a chegada do ponto X ao Y, todos passamos por terríveis pedregulhos, onde estacionamos, onde parece ser difícil chegar à marca final, até nos conformarmos com o tal ostracismo mental. Aquela válvula de escape.



É como se isso gerasse uma certa dependência dentro de um ciclo vicioso. Sonhamos, não realizamos, nos frustramos, nos escondemos, vivemos e voltamos a sonhar. Não tem fim. E se agora você não está inquieto com nada, logo estará. Mas a questão crucial não é a inquietude, mas sim o que fazer com ela. Em A Rosa Púrpura do Cairo temos a metalinguagem, onde a arte estuda a arte. Na vida real, convivemos com essa mesma complexidade – tentando entender a vida que vivemos ao procurar por uma vida que não temos, mas a queremos. Parece confuso, mas em linhas curtas seria: achar que a grama do vizinho é mais verde que a sua. Cecília pensa assim. Tom pensa assim. Nós também pensamos assim.

E o filme não tem final feliz. Mas sim, um final justo. Nos mostra que é incabível fugir da nossa realidade. Ela é transformada conforme a construímos e nos reter a sonhos ou miragens nos impedem de transformá-la. Não significa que não se deve sonhar. Pelo contrário. Mas também não se deve não realizá-lo. Quando sufocamos nossas frustrações em situações ou qualquer outra coisa que nos de alivio, fugimos para bem longe daquela pessoa que queremos ser. Cecília tinha medo de enfrentar seus problemas, engolia-os e os sufocava no cinema. É revigorante fazer isso uma vez ou outra, mas Woody nos mostra que isso pode gerar um efeito reverso. Em certo ponto, de tanto sufocar seus medos, eles podem acabar te sufocando. Os filmes nos ajudam a alimentar ambições, sonhos e ideias (em certos aspectos com mais intensidade nas mulheres), mas eles também nos ajudam a compreender verdades quase escondidas de nós.

Em A Rosa Púrpura do Cairo, é possível ver que caminhar é doloroso, mas dói muito mais se acostumar à frustração. Os pedregulhos dilatam os pés, mas é como diz a canção Outras Frequências do Engenheiros do Hawaii: Se fosse fácil achar o caminho das pedras, tantas pedras no caminho não seria ruim.

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