Olhar Conceito

Domingo, 05 de maio de 2024

Colunas

Uma história sobre o sangue derramado em uma noite carioca

Arquivo Pessoal

O sangue escorria pela face, correndo lentamente em fluxo constante à procura de liberdade. O chão de terra batida era uma mistura de barro marrom com a essência vermelha do ser humano. Naquela noite nem todos tiveram um jantar agradável em suas casas.

Os braços pendiam, perdidos, esquecidos. Não se sabe se o rapaz ainda sentia algo – nem mesmo ele poderia dizer, e, caso sentisse, talvez balbuciasse uma palavra que soasse como "fome", embora ninguém poderia ao certo dizer sobre o que seria essa sensação tão visceral. As mãos não tinham força, choravam em silêncio pelo que sofreram, e as marcas roxas avermelhadas de sangue demonstravam isso sem máscaras. Um ou dois dedos foram fortemente agredidos enquanto o rapaz tentava debilmente se defender – por pouco não houve fratura de algum osso.

Houve, contudo, o despedaçar de algo muito mais frágil; algo tão delicado que muitos preferem proteger dentro de uma jaula de ferro e chaves indecifráveis. Naquela noite, o rapaz teve a esperança fragmentada em cacos de vidro. Se antes acreditava em alguma bondade, em algum futuro ou mesmo em algum deus, não se pode dizer o mesmo depois daquilo. A violência por que fora cercado não lhe quebrou fisicamente, embora o sangue cheirasse à distância; mas foi sua essência humana que sofreu as consequências.

Naquela noite um rapaz foi amarrado nu a um poste, preso por correntes como um escravo que havia fugido de seu senhor; fora exposto à luz da noite em praça pública para que o chicote lhe fosse servido. O domador chegaria em não muito tempo, logo após uma rápida parada em um bar carioca para algumas doses da bebida nacional, que lhe bombeariam a força da justiça enquanto o chicote ressoasse nas costas do maldito.

O escravo obviamente era negro – a tradição não pode ser quebrada. Assim como sua cor de pele, seu passado talvez fosse negro, talvez não comesse duas vezes ao dia, talvez nunca pisara em uma escola, talvez não fosse nem aceito no metrô ou no ônibus. Talvez precisasse roubar para sobreviver. Tão negro como o passado seria seu futuro, imerso na escuridão do desconhecido de como sua vida seguiria, ainda mais depois daquela noite.

Naquela noite, um grupo relembrou a escravidão do país e a deixou sob correntes em um poste mal iluminado. Provaram do sangue do perigo maldito – e talvez até tenham gostado. Despedaçaram o espelho da sociedade e impuseram o medo e a justiça como sonhavam um dia ver. Reverteram a ordem social e o conceito de segurança. Naquela noite, o instinto do retrocesso humano ressurgiu, e a sociedade não sabia se reagia em choque ou orgulho.

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