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Domingo, 05 de maio de 2024

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O mundo está sendo a vida breve e nós continuamos a flutuar

Sabe aquela sensação de estar flutuando sobre as águas escuras de um rio? É assim que me sinto! Sinto-me flutuando nas águas da existência. Sei muitíssimo pouco daquilo em que meu corpo está imerso, mas adoro a sensação única de poder flutuar. Estar com seus pés no solo não representa a metáfora da vida, pois viver é flutuar no desconhecido e escuro rio de nossa existência.

Um orgasmo é um ato de vida. Procriar é um desejo inconsciente que norteia a atividade animal e vegetal. Somos tão animais quanto a todos outros animais. Temos o instinto da procriação, assim dizia o filósofo alemão Arthur Schopenhauer. Descobrimos recentemente que animais tem sentimentos. Animais sentem orgasmo, sentem atração, se exibem, fazem danças e rituais de procriação.

Acredito também que somos uma coisa só, nós homens, animais e plantas. Estamos todos interligados nesse ciclo do existir. Coabitamos. Porém, o homem se vê superior às demais formas de vida. Um cão pode ser tão belo como um ser humano e, um homem pode ser tão feio quanto a um cão raivoso. O homem se enxerga como o fruto especial da criação. Judeus, cristãos e islâmicos acreditam nisso. Depois que Deus cria o homem, o criador dá ordens a sua criatura. "Sejam férteis e multipliquem-se! Encham e subjuguem a terra! Dominem sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se movem pela terra".

A vida é brevidade. A vida é orgasmo. Ontem nascemos e logo morreremos. Sabemos que vamos morrer. A vida é aborto. Abortamos ideias e planos todos os dias. Lutamos contra a morte. Lutamos contra o tempo do existir. Queremos a jovialidade no modo ad eternum. Tomamos remédios. Tomamos cerveja. Vamos à igreja. Trabalhamos. Mentimos. Dormimos muito. Tudo isso para suportar o peso de nossa existência. Somos um piscar de olhos diante do tempo da existência do universal. Somos um cisco no instante cósmico, mas temos o desejo arrogante de eternidade. A eternidade é tediosa, mas mesmo assim queremos ser eternos. Não queremos acabar. O homem acha que veio para ficar. Ele se frustra quando descobre sua doença e seu fim. Ele se frustra por carregar a certeza que um dia irá morrer. Por isso queremos deixar filhos e agendas com anotações. O desejo de eternidade está nas telas de Salvador Dali e nas esculturas de Rodin. Quem escreve livro quer sua eternidade nas páginas que ficarão nas bibliotecas. Por isso queremos deixar marcas. Por isso queremos deixar nosso legado para humanidade. Deixar algo de si como um ato de eternizar-se pela memória, já que pela vida biológica não podemos.

Somos parte desse planeta e nosso universo com suas galáxias e constelações estelares também é parte de nós. Estamos ligados ao universo desconhecido pela luz do Sol e nossos olhos, onde até quem não tem olhos sente seu calor a flor da pele. A vida é um constante piscar e apagar de luz. Vagamos planetariamente pelo mundo e queremos achar água e vida em outras terras. Como se isso garantisse o existir de nossa futura vida sem futuro.

A esperança metafísica de um mundo além desse que vivemos. O pensamento de que estamos de passagem nessa existência é o que consola o homem diante da tragédia que ele constrói com suas próprias mãos. O desejo de destruir o meio ambiente como se aqui fosse algo passageiro. Deveríamos compreender que estamos na natureza e a natureza está em nós. Acho muito arrogante e pretensioso de nossa parte achar que somos mais importantes que uma árvore ou formiga. Mesmo assim derrubamos e pisamos nestes seres. Estamos no topo da cadeia alimentar, como os dinossauros de outrora que foram extintos. Estamos vendo chegar o dia que a mãe natureza irá cuspir o homem para fora de sua casa. Assim como na teoria do caos, vivemos o efeito borboleta, desencadeamos ações sobre tudo. Toda ação tem uma reação, assim como na física de Newton. Somos a causa e a consequência de tudo a nossa volta. Somos responsáveis e comparsas de nossa existência. Estamos ligados a tudo e a todos. Dessa terra não somos passageiros, ela está em nós e vice versa. O mundo não é! O mundo está sendo, já dizia o educador Paulo Freire.

O ser humano, ao longo de sua história, propôs perspectivas a respeito de sua existência, origem e importância no mundo. Estas por sua vez inflamavam o ego da humanidade, ocultando seu complexo de insignificância que por tantos séculos os homens se negavam a considerar. Suas considerações sobre si foram caindo lentamente, três feridas foram abertas no narcisismo humano: Copérnico (em provar que não somos o centro do Universo), Darwin (em provar que não somos seres especiais) e Freud (em provar que não somos dominantes sobre nós mesmos).

Quando Nietzsche escreveu seu livro Humano, demasiado humano, falou sobre a Esperança. Para os gregos, Pandora trouxe o vaso que continha os males e o abriu. Era o presente dos deuses aos homens, exteriormente um presente belo e sedutor, denominado "vaso da felicidade". E todos os males, seres vivos alados, escaparam voando: desde então vagueiam e prejudicam os homens dia e noite. Um único mal ainda não saíra do recipiente: então, seguindo a vontade de Zeus, Pandora repôs a tampa, e ele permaneceu dentro. O homem tem agora para sempre o vaso da felicidade, e pensa maravilhas do tesouro que nele possui; este se acha à sua disposição: ele o abre quando quer; pois não sabe que Pandora lhe trouxe o recipiente dos males, e para ele o mal que restou é o maior dos bens - é a esperança. - Zeus quis que os homens, por mais torturados que fossem pelos outros males, não rejeitassem a vida, mas continuassem a se deixar torturar. Para isso lhes deu a esperança: ela é na verdade o pior dos males, pois prolonga o suplício dos homens.

*Reinaldo Marchesi - É professor universitário, mestre em Educação pela UFMT (linha: Cultura, Memória e Teoria em Educação). Pesquisa no campo da Filosofia da Educação. Leitor de Nietzsche, Foucault, Deleuze e Derrida [Os malditos da filosofia]. Escreve todas às sextas-feiras na coluna Filosofia de Boteco.

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