Olhar Conceito

Sexta-feira, 03 de maio de 2024

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Sophia de Mello Breyner Andresen: no tempo dividido

Stéfanie Medeiros

Antes de começar o texto da coluna de hoje, acho interessante esclarecer algo que já me parecia claro, mas talvez ainda não esteja: que este texto (ou os anteriores, ou os próximos), este texto não é uma análise propriamente dita – lhe falta profundidade de análise, profundidade essa que nem é meu objetivo desenvolver aqui nem me caberia alcançar num texto de jornal. Este texto é uma conversa com o leitor. Apenas isso. Somos o leitor e eu sentados, conversando sobre esses artistas fantásticos. Aviso feito, vamos ao texto de hoje (à conversa de hoje)!

O livro "No tempo dividido" é dos mais sombrios na produção de Sophia de Mello Breyner Andresen. Domina o livro essa visão quebrada, ou melhor: visão completa de um mundo em ruínas (e o mundo está sempre em ruínas! É sempre bom lembrar); e isso se mostra de diversas formas: o metro normalmente coerente e uno da poesia de Sophia é substituído por um metro mais livre, quase caótico; as rimas muito comuns em outros livros aparecem raramente em "No tempo dividido"; o campo semântico das palavras "claras" (dia, luz, puro, branco, manhã) é substituído pelo campo semântico das palavras "escuras” (noite, sombrio, quebrado, frio, vazio, perda, estranho).

Enfim: o dia claro, a manhã limpa que normalmente dominam a poesia de Sophia dão lugar à noite fechada, à incompletude. Isso já se percebe no primeiro poema do livro:

I –

“A memória longínqua de uma pátria

eterna mas perdida e não sabemos

se é passado ou futuro onde a perdemos”



Isso não é pouca coisa. Como eu já disse em outro texto sobre a Sophia aqui nesta coluna, ainda que os elementos noturnos e relacionados à doença e à miséria (negativos) apareçam, normalmente eles estão em contraposição a elementos “diurnos” ou “puros” (positivos) que também aparecem nos livros, em algum momento. Esses elementos negativos fazem muito frequentemente representam – na poesia de Sophia – o “contrário de puro”, o “contrário de perfeito”, que Sophia rejeita.

Em “No tempo dividido”, pelo contrário, esses poemas sombrios dominam o livro de modo que são raros os poemas que escapam desse tom noturno, “pessimista” – eu não queria usar esta palavra, mas vá lá.

III –

“As paredes são brancas e suam de terror
A sombra devagar suga o meu sangue
Tudo é como eu fechado e interior
Não sei por onde o vento possa entrar

Toda esta verdura é um segredo
Um murmúrio em voz baixa para os mortos
A lamentação húmida da terra
Numa sombra sem dias e sem noites”



Mais do que apenas “sombrios”, os poemas oferecem uma reflexão bastante grave sobre o momento político de Portugal – a ditadura salazarista ainda teria décadas de terror pela frente, como já tinha algumas para trás.

Ainda, é possível alargar esse horizonte de Portugal para aquele do ocidente inteiro: é a crise daquilo que o homem guardava, confiante, dentro das mãos, e que se mostrava agora absolutamente inútil ante o século XX. O mundo mudava e não se sabia (não se sabe) o que fazer. É uma crise que, como toda crise, pressupõe um novo começo. Mas quando? E será que viria? Ou era aquele o fim de tudo? Não era difícil acreditar no pior, vivendo os portugueses como viviam na ditadura salazarista.

Imagino que o horror da ditadura salazarista somado à transfiguração pela qual o mundo passava (e sempre passa! É só prestar atenção que se perceberá isso, apesar de sempre parecer que é a última vez, que é o fim) tenham sido um golpe forte em Sophia.

Sophia de Mello Breyner Andresen era dessas poucas pessoas, desses poucos artistas que ainda ousam genuinamente acreditar em coisas como “perfeição”, “pureza”, “equilíbrio”, “harmonia”. Normalmente a crença nessas abstrações é pura ingenuidade ou mesmo ignorância. Poucas são as pessoas inteligentes e conscientes que ainda acreditam totalmente em coisas como a “perfeição” ou a “pureza”. Sophia fazia parte desse grupo raríssimo.

E assim, acreditando na pureza e a na harmonia, via o mundo ruir – e ele sempre está ruindo, não me canso de me repetir.

NO TEMPO DIVIDIDO

“E agora ó Deuses que vos direi de mim?

Tardes inertes morrem no jardim.

Esqueci-me de vós e sem memória

Caminho nos caminhos onde o tempo

Como um monstro a si próprio se devora.”



Diante disso, os poemas de Sophia em “O tempo dividido” seguem basicamente dois caminhos: ou retratam o horror do mundo ou, orgulhosos, tentam criar um espaço de pureza onde ainda possa existir alguma coisa boa, alguma doçura e alguma verdade. Ou seja, já que no mundo esse espaço puro não existia (não existe), restava à poesia de Sophia criá-lo ou então retratar o absurdo e a crueldade do homem. Correr em direção ao mundo ou correr para longe – e na falta de um lugar aonde correr, criar esse lugar.

E nesse movimento de procura e de recusa, criou um dos mais belos poemas em língua portuguesa:

PRECE

Que nenhuma estrela queime o teu perfil
Que nenhum deus se lembre do teu nome
Que nem o vento passe onde tu passas.


Para ti eu criarei um dia puro
Livre como o vento e repetido
Como o florir das ondas ordenadas.



Felizmente (acho eu) Sophia mais encarou o mundo do que tentou fugir dele. Essa coragem poucos têm. E, esperando encontrar o mundo, Sophia foi como Eurídice à espera de seu Orfeu – que é a pureza e a perfeição no mundo.

SONETO DE EURYDICE

Eurydice perdida que no cheiro
E nas vozes do mar procura Orpheu:
Ausência que povoa terra e céu
E cobre de silêncio o mundo inteiro.

Assim bebi manhãs de nevoeiro
E deixei de estar viva e de ser eu
Em procura de um rosto que era o meu
O meu rosto secreto e verdadeiro.


Porém nem nas marés, nem na miragem
Eu te encontrei. Erguia-se somente
O rosto liso e puro da paisagem.

E devagar tornei-me transparente
Como morte nascida à tua imagem
E no mundo perdida esterilmente.

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*A coluna Rubrica, publicada todas as segundas no Olhar Conceito, é assinada por Matheus Jacob Barreto. Matheus nasceu na cidade de Cuiabá/MT. Foi um dos vencedores das competições nacionais “III Prêmio Literário Canon de Poesia 2010” e “III Prêmio Literário de Poesia Portal Amigos do Livro de 2013”. Teve seus poemas vencedores publicados em antologias dos respectivos prêmios. Em outubro de 2012 participou da Bienal Internacional do Livro de São Paulo. Estuda na Universidade de São Paulo e mora na capital paulista. Escreveu o livro “É” (Editora Scortecci, 2013).


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