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Sexta-feira, 03 de maio de 2024

Colunas

Cláudio Neves: a precisão dos silêncios

Stéfanie Medeiros

Antes de começar a coluna de hoje, vou repetir o aviso dado na coluna anterior (e farei isso por mais algumas semanas), e que é: “Antes de começar o texto da coluna de hoje, acho interessante esclarecer algo que já me parecia claro, mas talvez ainda não esteja: que este texto (ou os anteriores, ou os próximos), este texto não é uma análise propriamente dita – lhe falta profundidade de análise, profundidade essa que nem é meu objetivo desenvolver aqui nem me caberia alcançar num texto de jornal. Este texto é uma conversa com o leitor. Apenas isso. Somos o leitor e eu sentados conversando sobre esses artistas fantásticos. Aviso feito, vamos ao texto de hoje (à conversa de hoje)!”

Cláudio Neves (1968- ) desponta como um dos nomes mais consistentes da recente poesia brasileira. “Consistente” e – eu acrescentaria –“consciente” por 2 motivos: primeiro pelo domínio que tem sobre as formas, o metro e os ritmos; mas isso não é grande novidade entre os bons poetas de nenhuma época. A diferença de Cláudio Neves para os outros, no entanto, é que, munido desses ritmos todos ele enfrenta com terrível serenidade os “temas maiores”, os “temas centrais” do homem: a morte, a vida, o silêncio, o próprio homem.

Usar a palavra “tema”, aliás, me parece não dar conta do impacto e da influência constantes e fartas que a morte, a vida ou o vazio têm na existência humana. Aliás, talvez por causa deles não tenhamos apenas “existência”, mas “vida”.Mas isso é assunto para outra coluna.

Cláudio Neves é, na minha não tão humilde opinião, um dos grandíssimos poetas a surgir no horizonte da nossa atual literatura; um poeta com potencial e força líricos já postos à prova – e com resultados muito animadores.


MANHÃ
“O primeiro azul sobre a bandeja
das maçãs de resina. O primeiro azul
sobre o livro esquecido aberto.
Os objetos surpresos
ou cansados da existência.

O cão que fareja o sol
e gira em torno da mesa de centro.
A sombra do prédio em frente
já devorando a franja do tapete.

Os mortos que voltam discretamente aos seus espelhos.”


Cláudio Neves parece fazer do silêncio sua matéria-prima, ou melhor: das coisas quase ditas, daquilo que fica preso entre o que se pensa e o que se vai dizer. Sua poesia é feita de silêncio e de cautela. Aliás, acho que “cautela” é uma das palavras mais adequadas à sua poesia: a escolha do metro, os rumores organizados, a sala de estar vazia, as madrugadas dentro de casa: é tudo num pianíssimo, num adagio nada romântico: limpo e seco.

O livro “Isto a que falta um nome” (2011, É Realizações Editora. Todos os poemas aqui citados são deste livro) é um trabalho de cautela, de precisão, de limpeza e profundidade (por mais batida que a palavra “profundidade” seja, acho que ela é neste caso insubstituível). É um trabalho minucioso de sombras, luzes e cuidado. Fosse Cláudio Neves um pintor, seus traços seriam simples, firmes e poucos.


DIZERES
I –
“Diz-se morte como quem diz manhã,
maçã, aquário, flauta, borboleta.

(Talvez que, quando dita, se completa
ou se aniquila quando som de letra.)

Morte se diz de qualquer fim de prazo,
qualquer acaso do caminho ou da vontade,

diz-se das ondas quando dão na praia
ou se nos falha um plano, uma trapaça.

Morte se diz como se dizcontrato,
senhorio, despejo, nova casa,

diz-se de um rio quando encontra o mar
e de uma rua quando dá em nada.

(Talvez que, com dizê-la, assim se evita
seu centro de silêncio, seu oco de sentido.)”


Sobre Cláudio Neves já escreveram Ivan Junqueira, Érico Nogueira, Marco Lucchesi, Paulo Henriques Britto, Antonio Carlos Secchin, Antonio Carlos Villaça e muitos outros. É quase unanimidade esse forro metafísico, esse peso (levíssimo, no caso) daquilo que está atrás, dentro e acima dos objetos. Cláudio Neves é um poeta das coisas concretas, firmes, que pegamos nas mãos – e daquilo que elas apenas sugerem, apenas rascunham, apenas murmuram.

Drummond, João Cabral de Melo Neto, de certa forma também Jorge de Sena: poetas que cantaram a pedra à poesia de Cláudio Neves; poesia esta que (como já disse Érico Nogueira, o prefaciador de “Isto a que falta um nome”, citando a terminologia de Harold Bloom), conservando o que há de melhor em cada mestre, traz ao horizonte da nossa poesia um novo tom de vermelho, uma nova cor e um novo silêncio.


NOTAS PARA O LIVRO DAS CONSTATAÇÕES
I –
Num tempo a um só tempo inamovível
e futuro, num nicho de penumbra
(embora, nua, uma mulher sem rosto,
onipresente, me toldasse qualquer fuga),

sob um céu sem música, inconstelável
de pássaros, um cão latiu, em sua
antiga, inútil, vigilante fúria,
contra um ladrão, um outro cão, um morto.

Num tempo a um só tempo remorso e consolo,
tudo se esvaziou do que não fosse corpo,
do que não fosse efêmero, do que não fosse

um céu parado, interditado ao sonho,
uma mulher à espera, uma ideia sem fundo,
um cão latindo indiferente ao mundo.

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