Olhar Conceito

Sexta-feira, 03 de maio de 2024

Colunas

Rainer Maria Rilke: o poeta absoluto

Stéfanie Medeiros / Olhar Conceito

Antes de começar a coluna de hoje, vou repetir o aviso dado na coluna anterior (e farei isso por mais algumas semanas), e que é: “Antes de começar o texto da coluna de hoje, acho interessante esclarecer algo que já me parecia claro, mas talvez ainda não esteja: que este texto (ou os anteriores, ou os próximos), este texto não é uma análise propriamente dita – lhe falta profundidade de análise, profundidade essa que nem é meu objetivo desenvolver aqui nem me caberia alcançar num texto de jornal. Este texto é uma conversa com o leitor. Apenas isso. Somos o leitor e eu sentados conversando sobre esses artistas fantásticos. Aviso feito, vamos ao texto de hoje (à conversa de hoje)!

Como dito na coluna da semana anterior, começarei a falar sobre lírica e prosa em língua alemã (porém de vez em quando também falarei sobre literatura de outros países e outras línguas). A ordem das colunas, como já foi dito, não é cronológica. Começo, portanto, com Rainer Maria Rilke (1875-1926).

Rainer Maria Rilke nasceu em Praga – hoje República Checa, na época ainda Império Austro-Húngaro. Foi o último poeta antigo e o primeiro moderno, dizem; era ainda sustentado por mecenas em pleno século XX (pela Princesa Marie von Thurn and Taxis - Hohenlohe, por exemplo), fato por si só já bem improvável no borbulhante século XX.

Rilke partiu tanto das formas fixas quanto do verso livre para criar uma obra de frescor e força (por mais antagônicas que possam parecer essas características) inigualáveis, deixando todos os caminhos já usados de lado e abrindo ele mesmo seu próprio, fresco e perigoso caminho. O novo e o velho se fundem sob a voz potente de Rilke, e o resultado disso é um dos maiores poetas da história.

Rilke tem papel seminal na literatura de qualquer língua – no ocidente pelo menos. Poucos autores modificaram tanto a face da literatura que veio depois (mais recentemente, por exemplo, o poeta sírio Adonis fez o mesmo no âmbito da literatura em árabe), e poucas tiveram a força quase mística que a obra rilkeana parece exercer sobre seus leitores há mais de cem anos. No Brasil, por exemplo, Rilke passou a ler lido e cultuado de forma quase febril a partir daquelas primeiras traduções de sua obra feitas na metade do século passado. Os ecos da poesia rilkeana chegaram a artistas brasileiros do porte de Manuel Bandeira, Cecília Meireles e Carlos Drummond de Andrade, por exemplo.

Bandeira e Meireles traduziram alguns dos seus poemas e textos em prosa ao português – essas e outras traduções surgidas no Brasil [por exemplo, aquelas de Geir Campos (1953), Dora Ferreira da Silva (1972) e Karlos Rischbieter (2002)] foram importantes para a difusão da poesia de Rilke no Brasil; e a partir de então diversos poetas brasileiros passaram a produzir literatura fortemente influenciada por aquele.

Alguns nomes exemplares são Murilo Mendes (1901-1975), Dora Ferreira da Silva (1918-2006), Geir Campos (1924-1999), Lêdo Ivo (1924-2012), José Paulo Paes (1926-1998), Ferreira Gullar (1930- ), Hilda Hilst (1930-2004), Mário Faustino (1930-1962), Ivan Junqueira (1934- ) e Carlos Nejar (1939- ), Bruno Tolentino (1940-2007), Carlito Azevedo (1961- ), Cláudio Neves (1968- ) e Érico Nogueira (1979- ).

Tome-se como exemplo da força rilkeana o segundo soneto do livro “Sonetos a Orfeu”, aqui em tradução de Karlos Rischbieter, 2002, pela Editora Record. É importante lembrar que os “Sonetos a Orfeu” foram escritos como monumento funerário para Wera Ouckama Knoop, bailarina morta ainda adolescente, cuja morte teve efeitos mais do que profundos na vida de Rilke:


I.2
“Nesta harmonia de lira e canto,
era quase uma menina a que vinha.
Bela, com a primavera no manto;
e em meu ouvido se aninha.

E dormiu em mim. Tudo era seu sono.
As árvores, outrora admiradas,
os campos, as distâncias serenadas
e todo assombro com que me impressiono.

Dormiu o mundo. Deus cantor, com que frase
a embalaste para que não desejasse,
antes, acordar? Nasceu e dormiu.

Onde sua morte? Quem a pressentiu
antes que a voz se consumasse?
De onde cai, de mim?... Uma menina quase...”


A tradução de Rischbieter consegue conservar algo da força rilkeana que muitas vezes acaba se perdendo nas traduções. Suas opções tradutológicas foram felizes, de modo geral.

O poema número 3 de certa forma continua a indagação que fecha o soneto anterior, como se pode observar:


I.3
“Um Deus o pode. Como, porém, poderá
um homem segui-lo na lira delgada?
Seu acordo é discorde. Na encruzilhada
dos corações, templo para Apolo não há.

Cantar, como o ensinas, não é tormento,
nem desejo de uma conquista final.
Cantar é ser. Para o Deus, coisa banal.
Mas nós: quando somos? Em que momento

ele constela Terra e Estrelas em nosso ser?
Jovem, amar é tudo e nada, embora
a voz te rasgue a boca: aprende a esquecer

que cantaste. É apenas por um momento.
Cantar em verdade é outro canto agora.
Um canto por nada. Um sopro em Deus. Um vento.”


Rilke parece devolver à poesia aquela postura de investigação do místico, do que não está aqui – porém (e aqui mora sua genialidade) a partir daquilo que está sim aqui, a partir daquilo que há de palpável, de concreto: uma pantera num zoológico, uma estátua vista com atenção, uma rosa, uma onda.

Rilke não parece apenas fazer poesia: ele parece usar a poesia como instrumento na descoberta do mundo e daquilo que não há no mundo. Eu não poderia dizer, então, que Rilke é só um poeta que investigou o homem, o finito e o infinito; diria, melhor, que Rilke é um homem, e ponto; ou, ainda melhor, que a obra de Rilke é todos os homens. Horrível e maravilhosamente humanos foram Rainer Maria Rilke e sua obra.

Aqueles que ainda não começaram a ler um dos maiores poetas da história podem começar pelos livros “Sonetos a Orfeu”, “Elegias de Duíno”, “O Livro das Horas” ou até pelo “Cartas a um jovem poeta” (este último compilação de cartas enviadas por Rilke ao então aspirante a poeta Franz Kappus). Os quatro livros citados acima já estão disponíveis em traduções para o português.

Abaixo, reproduzo apenas o início da Primeira Elegia de “Elegias de Duíno” (também na tradução de Karlos Rischbieter, 2002, pela Editora Record).


A PRIMEIRA ELEGIA
“Quem, se eu gritasse, ouvir-me-ia na hierarquia
dos anjos? E mesmo que um deles me apertasse,
de repente, ao seu coração: eu padeceria perante sua
existência mais forte. Pois o belo nada mais é
do que o começo do Terrível que ainda suportamos;
e o admiramos porque, sereno, desdenha
destruir-nos. Todo anjo é terrível.
      E assim me contenho e retenho o apelo
do meu soluço sombrio. Ai, a quem podemos
dirigir-nos? Aos anjos não, nem aos homens;
e os animais astutos já notaram
que nós não somos confiáveis
neste mundo definido. Resta-nos, talvez,
uma árvore qualquer na encosta, que revemos
todos os dias; resta-nos a estrada de ontem
e a fidelidade mimada de algum hábito
que gostou de nós e conosco ficou e não se foi.
       E a noite, a noite, quando o vento, pleno de espaço
do mundo, roça nossa face, não seria ela – a desejada,
levemente enganosa – desafio penoso para
o coração solitário? Será ela mais fácil para os amantes?
Ai, eles apenas escondem, um do outro, o seu destino.
Não o sabes ainda? Lança o vazio dos teus braços
aos espaços que respiramos; talvez os pássaros
sintam o ar mais amplo em seu voo mais íntimo.
(...)”

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