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Sexta-feira, 26 de abril de 2024

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Coluna de estreia: Miniconto "Alugador"

Quando aluguei meu pai ele não falava nada.

Daí ensinei que pai tem que falar, ensinar, dar lição de moral, puxar orelha, cobrar as coisas. Ele demorou pra aprender. Mas aprendeu, todo mundo aprende. Quando já tava bem treinado dei um presente pra ele. Aluguei minha mãe.

Ele ficou alvoroçado. Só pensava em putaria. Foram dois meses pra se acostumarem com a presença um do outro. Daí ela tomou jeito, aprendeu a cozinhar, que comida de mãe é insuperável. Depois veio todo o amor que é marca registrada da maternidade. Foi virando. Carinho, intuição, aquela placidez que caracteriza a presença feminina no mundo.

O cachorro aluguei na sequência, junto com a planta. Pra eles cuidarem, ver se era isso mesmo que queriam. Mataram a planta mas o cachorro ficou vivo e gordo, então menos mal.

Aluguei minha irmã mais velha. Ela nasceu com dois problemas. Uma má formação no sistema renal, rins fraquinhos que perigavam parar a qualquer hora, o que fez eles comprarem um maquinário espalhafatoso pra instalar no quarto dela. O outro problema era ser filha única, que a criança fica com várias sequelas, a pior delas achar que o mundo é mais dela que dos outros. Mas eu viria em breve pra resolver isso.

Aluguei um corpo. Minha mãe fez tudo direito, não fumou, não bebeu, não dirigiu. Nasci saudável, cresci e aprendi e ganhei consciência. Quando eu tava com cinco anos e minha irmã com nove, ela já tinha se enfezado o suficiente pra aprender que a gente tem que dividir as coisas, material e imaterial. E já tava bem ruinzinha, tadinha, não saía mais da cama. Aos sete parou de crescer e eu tava com a altura dela.

Eu soube que chegou a hora quando ela foi dormir e não me deu um beijo, de tão cansada.

Aluguei um ilusionista, que eu sempre quis ver mágica de perto. No último truque ganhei uma pílula, colorida e redondinha feito uma salsicha. Engoli e fiquei maravilhado olhando as coisas perderem a cor e os contornos. Meus pais choraram mas lá no fundo sabiam que eu só tinha vindo pra cumprir esse propósito. Os rins ficaram pra minha irmã, o resto deram um jeito de usar pra salvar outras duas crianças. Tudo previsto na cláusula do contrato quando comecei com essa história de alugar.

Por último eu aluguei um sorriso. Usei meus últimos créditos. Ele veio antes da hora, quando minha irmã ainda tava na mesa de operação. Ninguém entendeu, o médico assustou, mas ela, que querida, sorriu no exato momento em que ganhava uma segunda chance, sorriu e deixou uma lágrima correr do canto do olho e eu ri também e sumi e depois disso não me lembro mais de nada.

*Santiago Santos é escritor, jornalista, tereréficionado e mora em Cuiabá. Publica doses concentradas de literatura no www.flashfiction.com.br - de conversas de boteco a universos paralelos, de casos indecifráveis à análise do sorriso de um dragão banguela. A coluna no Olhar Conceito é semanal.

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