Olhar Conceito

Sábado, 20 de abril de 2024

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Hermann Hesse: "Demian" e a morte do velho mundo

Stéfanie Medeiros

Antes de começar a coluna de hoje, vou repetir o aviso dado na coluna anterior (e farei isso por mais algumas semanas); e que é: “Acho interessante esclarecer algo que já me parecia claro, mas que talvez ainda não esteja: este texto (ou os anteriores, ou os próximos), este texto não é uma análise propriamente dita – lhe falta profundidade de análise, profundidade essa que nem é meu objetivo desenvolver aqui nem me caberia alcançar num texto de jornal. Este texto é uma conversa com o leitor. Apenas isso. Somos o leitor e eu sentados conversando sobre esses artistas fantásticos. Aviso feito, vamos ao texto de hoje (à conversa de hoje)!”

Hermann Hesse, vencedor do Nobel de Literatura em 1946 e um dos autores de língua alemã mais lidos e celebrados no século XX, publicou “Demian” em 1919 sob o pseudônimo “Emil Sinclair”.

Alguns consideram “Demian” – junto com “O lobo da Estepe” e “Sidarta” – o maior livro da extensíssima produção de Hesse (mais de 45 livros, fazendo uma conta bem por cima). É quase palpável, de tão forte, a influência dos escritos de Nietzsche e de Freud (sobretudo no enredo, nas relações entre os personagens e nas mais do que sutis e delicadas ligações entre Sinclair, Demian e a mãe de Demian).

A narrativa de Hesse parece estar em algum lugar entre a literatura do século anterior e aquela do século XX (em algum muito avantajado lugar, diga-se de passagem!): o livro “Demian” é a realização literária do conflito entre o velho e o novo, entre o cristão e o não-cristão, entre o bem e o mal, entre o certo e o errado.

Há um forro metafísico que domina todo o livro (e, talvez, domine toda a obra de Hermann Hesse), já que – apesar de ter rejeitado a fé cristã de seus pais –, Hermann Hesse em suas narrativas nunca desistiu da busca por algo que permeie tudo e todos, por uma força maior que possa reger toda a complexidade que o mundo é.

Talvez seja esta a característica que mantém Hesse entre o século anterior e o seguinte, sobre a qual falei no começo do texto: Hesse assiste à ruína definitiva da instituição e da fé cristãs como existiam até o século XIX, e se vê de mãos abanando ante o mundo feroz e múltiplo que é o nosso. Daí as extensas pesquisas de Hesse sobre misticismo indiano, sobre psicanálise, sobre filosofia, sobre mitologia. Parece que a literatura de Hesse girou em torno desse fundo oco, desse vazio deixado pela fé que seus pais lhe tinham dado e que ele rejeitou.

(A passagem de “Demian” abaixo foi traduzida por Ivo Barroso).

“— Sei o que vais dizer-me — continuou resignado. — Sempre tropeçamos com isso!

Mas ouve-me ainda um momento: este é um dos pontos em que se vê mais claramente os defeitos da religião. Esse Deus da antiga e da nova Aliança é, antes de tudo, uma figura extraordinária, mas não o que realmente deveria ser. Representa o bom, o nobre, o paternal, o belo e também o elevado e o sentimental... está bem! Mas o mundo se compõe também de outras coisas. E todas essas coisas são simplesmente atribuídas ao Diabo; toda essa parte do mundo, toda essa outra metade é encoberta e silenciada. Glorifica-se a Deus como o Pai de toda a vida, ao mesmo tempo em que se oculta e se silencia a vida sexual, fonte e substrato da própria vida, declarando-a pecado e obra do Demônio. Não faço a menor objeção a que se adore esse Deus Jeová. Mas creio que devemos adorar e santificar o mundo inteiro em sua plenitude total e não apenas essa metade oficial, artificialmente dissociada. Portanto, ao lado do culto de Deus devíamos celebrar o culto do Demônio. Isto seria o certo. Ou mesmo criar um deus que integrasse em si também o demônio e diante do qual não tivéssemos que cerrar os olhos para não ver as coisas mais naturais do mundo.”

Acredito que Hermann Hesse tenha rejeitado a fé dos pais não por rebeldia pais-filho, mas por perceber que o esquema bem-contra-o-mal, certo-contra-o-errado já não tinha lugar no mundo (se é que algum dia teve). A busca pelo deus que seja ao mesmo tempo o Bem e o Mal, o Certo e o Errado, o Ladrão e o Profeta é a única busca plausível que o mundo parece oferecer. Qualquer redução do mundo a duas partes (o “mundo claro e correto”, o “mundo escuro e pecador”) será totalmente engolida por um mundo que é muito mais complexo do que essa parca dualidade.

Abaixo reproduzo a célebre passagem que abre o quinto capítulo (aqui também em tradução de Ivo Barroso):

“A AVE de meu sonho seguiria em busca do amigo, quando, como por magia, chegou-me uma resposta.

Na sala de aula, sobre a carteira, encontrei, durante o intervalo entre duas lições, um
bilhete metido entre as páginas de um livro. Estava dobrado da forma convencional usada entre os alunos quando queriam comunicar-se durante a aula. Fiquei surpreso apesar de tudo, sem saber quem me escreveria, pois não tinha por hábito manter aquele gênero de comunicação com qualquer de meus colegas. Imaginei que fosse um convite para alguma brincadeira escolar, da qual não participaria, e por isso deixei o bilhete no livro, sem o ler.

Mas logo, durante a aula, voltou a cair-me entre as mãos. Brincando com o papel,
desdobrei-o inconscientemente e encontrei algumas palavras escritas. Lancei-lhe uma
olhada distraída e fiquei preso a uma palavra, assustado e tolhido, enquanto meu coração se contraia ante o destino, invadido por súbita algidez:

"A ave sai do ovo. O ovo é o mundo. Quem quiser nascer tem que destruir um mundo. (...)"”

Sempre que penso em Hermann Hesse acabo me lembrando do compositor Gustav Mahler, acho que suas obras tiveram muito em comum: ambos são “filhos do século XIX”, que aprendem e escutam tudo aquilo que o século XIX tinha a oferecer e a ensinar, e que – confiantes daquilo que aprenderam – caminham satisfeitos em direção ao século XX. Que surpresa eles não têm quando veem o século XX destruir tudo o que, confiantes, eles levavam nas mãos! O século XX com suas mortes em massa, com suas guerras em proporções nunca vistas, com suas lutas sociais acirradas depois de séculos de domínio da classe dominante.

Os dois tinham então duas opções: recusar o século XX e voltar para sua concha mental do século anterior, ou enfrentar e absorver o século XX (sempre penso em algo como duas ondas que se chocam e depois se misturam).

Felizmente, creio eu, eles escolheram entrar no século XX.

O que se dá, então, é uma combinação muito curiosa: aqueles artistas, munidos de tudo o que haviam aprendido do século XIX e dos anteriores, se viam frente ao século XX, diferente de tudo que o mundo havia visto até então. Disto surge essa combinação, esse choque entre o mundo velho e o mundo novo, e o desespero e as belezas que esse choque desencadeia.

Esse choque é a obra de Hermann Hesse.

Se o resultado (“resultado” sempre entre aspas, já que nada que valha a pena pode chegar a se completar, nunca) de Hesse é o melhor caminho, isso não se sabe nem nunca ninguém vai saber. O fato é que o caminho que Hesse aponta foi composto em algumas das melhores linhas da literatura do último século, e que, ainda que não seja este O Caminho (há um só? Acho que não, e os que lerem “Demian” com alguma atenção também verão que não há nenhum Caminho com “C” maiúsculo, nenhum), pelo menos ele já nos afasta do caminho estreito por onde andávamos antes.

E, por fim, reproduzo mais um trecho de “Demian”, ainda em tradução de Ivo Barroso:

“ – (...) Só então percebi por que minha adolescência estivera tão enlaçada com Max, e por que não era possível desligar-me dele. Por ocasião de nosso segundo encontro, pensei muitas vezes que iria acabar com a vida. Será que o caminho é tão difícil para todos?
Sua mão resvalou por cima de meus cabelos tão suave como a brisa.

— Sempre é difícil nascer. A ave tem de sofrer para sair do ovo, isso você já sabe.
Mas volte o olhar para trás e pergunte a si mesmo se foi de fato tão penoso o caminho.
Difícil apenas? Não terá sido belo também? Podia imaginar outro tão belo e tão fácil?
Movi, dubitativo, a cabeça.

— Foi penoso — disse como adormecido — foi penoso até que veio o sonho.
Assentiu e fitou-me penetrantemente.

— Sim, temos que encontrar nosso sonho, e então o caminho se torna fácil. Mas não
há nenhum sonho perdurável. Uns substituem os outros e não devemos esforçar-nos por
nos prender a nenhum.”

*A coluna Rubrica, publicada todas as segundas no Olhar Conceito, é assinada por Matheus Jacob Barreto. Matheus nasceu na cidade de Cuiabá/MT. Foi um dos vencedores das competições nacionais “III Prêmio Literário Canon de Poesia 2010” e “III Prêmio Literário de Poesia Portal Amigos do Livro de 2013”. Teve seus poemas vencedores publicados em antologias dos respectivos prêmios. Em outubro de 2012 participou da Bienal Internacional do Livro de São Paulo. Estuda na Universidade de São Paulo e mora na capital paulista. Escreveu o livro “É” (Editora Scortecci, 2013).

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