Olhar Conceito

Quarta-feira, 01 de maio de 2024

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Flash Fiction: Cerveja Congelada

Quando descobriram como viajar no tempo e me perguntaram o que eu mudaria, disse que gostaria de voltar a um dia específico e não deixar uma cerveja congelar no freezer.

Riram, disseram que eu era louco, mas eu disse que não tava brincando. O que você tem que entender é que não é só a cerveja.

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Aquela noite eu tava vendo um jogo de futebol. Coisa boba, não era final nem nada. Daí subi umas latinhas pro freezer. E esqueci a última lá, achei que já tinha tomado.

Minha esposa saíra com as amigas, um chá de bebê se não me engano, e fiz questão de não ir porque odiava aquelas coisas. Quando chegou em casa abriu uma coca e foi pegar gelo no freezer. A latinha que eu esqueci estourou e tinha ondas congeladas de cerveja por todos os lados. A briga começou. Eu era irresponsável. Só queria beber. Cuidar do nosso filho que é bom nada, o moleque só jogava vídeo-game e comia paçoca o dia inteiro, tava ficando uma bola, e eu só queria saber de futebol. A discussão esquentou, eu saí de casa e fui dormir num hotel.

De manhã uma amiga dela ligou, e descobri o que tinha acontecido. Minha esposa colocou nosso filho no carro e pegou a estrada, queria passar uns dias na casa da mãe pra clarear a cabeça. Um desgraçado num caminhão dormiu no volante, pegou o carro no meio, matou os dois na hora.

Eu chorei uns três meses seguidos. Nesse processo perdi o emprego. Depois a casa. Meus pais já tinham morrido e recusei ajuda dos amigos. Fui morar na rua. No centro, ao lado da ponte, achei um terreno vazio, disseram que tava abandonado, na justiça. Lá construí uma cabana de lona e fui morando, pedindo esmola no semáforo, cuidando de carro final de semana.

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Daí os cientistas vieram. Precisavam de uma cobaia. Eu topei na hora. Já tinha perdido tudo mesmo, se perdesse a vida não fazia muita diferença. E não é que os desgraçados conseguiram?

Voltei àquele dia como se nada tivesse acontecido. Desliguei a TV. Obriguei meu filho a sair do vídeo-game e fazer a tarefa. Quando ela chegou em casa eu já tinha toda a conversa preparada. Pedi desculpa, chorei um monte, disse que ia mudar. Depois as coisas se acertaram.

Mas tenho que confessar: antes disso, no momento em que abri os olhos e me vi no sofá, mal ouvi o que o locutor gritava na TV. Abri o freezer e tirei a latinha. Não tinha congelado ainda.

Acho que foi a melhor coisa que já tomei na vida.

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SANTIAGO SANTOS é escritor, jornalista, tereréficionado e mora em Cuiabá. Publica doses concentradas de literatura no www.flashfiction.com.br - de conversas de boteco a universos paralelos, de casos indecifráveis à análise do sorriso de um dragão banguela. A coluna no Olhar Conceito é semanal.

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