Olhar Conceito

Quinta-feira, 28 de março de 2024

Colunas

Flash Fiction: Moleque bom

O fazendeiro Fustibaldo tinha um filho, moleque novo e obediente.

Era o orgulho da família e fazia por merecer, exemplo para todos os primos. Acordava cedo, tirava leite das vacas, ia pra escola, tirava nota boa, voltava, ajudava a arar o campo, a cuidar dos cavalos, a limpar a casa com a mãe. Depois brincava com as crianças das fazendas vizinhas até escurecer. Dormia cedo. Não dava problema.

---

Quando Irmenegilda chegou à cidade tinha um único objetivo: aumentar a coleção. Já passara por muitos lugares e em todos eles uma criança desaparecia e nunca mais era encontrada.

Andou até achar uma escola. Não havia lugar melhor para o que fazia, como toda bruxa sabia. Abriu a bolsa, sacudiu, e de dentro tirou uma porta. Instalou-a no muro de um casarão e esperou a primeira criança aparecer. Era o filho de Fustibaldo.

Ela chamou e o garoto obedeceu, pois aprendera a respeitar os mais velhos. Disse que a porta levava a um lugar mágico em que a noite não chegava e ninguém sentia sono. Abriu e pediu que desse uma olhada. O menino ficou deslumbrado, como qualquer criança ficaria diante do cenário digno de desenhos animados: brinquedos, atrações circenses e comida colorida, carros e bonecos, tobogãs e montanhas-russas. Mas não entrou. Balançou a cabeça e disse que precisava voltar para casa.

Irmenegilda nada podia fazer, porque a regra era antiga e clara: a criança só atravessa a porta por vontade própria. Resolveu acompanhá-lo, tentando o caminho todo convencê-lo. A insistência na recusa irritou a bruxa. Meus pais estão esperando, ele dizia.

Antes que Irmenegilda declarasse a tentativa frustrada, chegaram na casa. O garoto perguntou se gostaria de almoçar com eles. Nunca recebera convite ou presente de uma criança antes e, surpresa, aceitou.

---

Comeram arroz e broas de milho, feijão tropeiro e ensopado de carneiro, toucinho e abobrinha frita. Quando Irmenegilda já não conseguia mais ver comida a mãe veio com a sobremesa, um pudim de maracujá. Ela comeu e repetiu e se esticou no chão, dormindo em poucos segundos.

O fazendeiro Fustibaldo foi à cozinha e voltou com um machado. Picou a bruxa e enterrou no quintal, em oito lugares diferentes. Não era porque se aposentara, que encontrara uma esposa e deixara para trás a vida de caçador de monstros, que deixara de se importar com isso. Agora, depois de anos de vida sossegada, Fustibaldo viu que pelo menos em uma coisa acertou.

Criou bem seu filho.

-----------------------

SANTIAGO SANTOS é escritor, jornalista, tereréficionado e mora em Cuiabá. Publica doses concentradas de literatura no www.flashfiction.com.br - de conversas de boteco a universos paralelos, de casos indecifráveis à análise do sorriso de um dragão banguela. A coluna no Olhar Conceito é semanal.

Comentários no Facebook

Sitevip Internet