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Sexta-feira, 29 de março de 2024

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Heinrich Böll: o gênio do homem comum

Stéfanie Medeiros

Antes de começar a coluna de hoje, vou repetir o aviso dado na coluna anterior (e farei isso por mais algumas semanas); e que é: “Acho interessante esclarecer algo que já me parecia claro, mas que talvez ainda não esteja: este texto (ou os anteriores, ou os próximos), este texto não é uma análise propriamente dita – lhe falta profundidade de análise, profundidade essa que nem é meu objetivo desenvolver aqui nem me caberia alcançar num texto de jornal. Este texto é uma conversa com o leitor. Apenas isso. Somos o leitor e eu sentados conversando sobre esses artistas fantásticos. Aviso feito, vamosà conversa de hoje!”

Heinrich Böll (1917-1985), autor alemão cuja produção começou a ser publicada depois da Segunda Guerra Mundial, escreveu peças, poemas e também contos, mas alcançou de fato sua maturidade artística como romancista. O romance ,,UndsagtekeineinzigesWort” (numa tradução rápida: “E não disse uma única palavra”) é um farol em meio à profusão de literatura pós-guerra – um farol sujo, fraco, talvez feio, mas ainda assim um farol, uma luz. E de sua imundície e feiura conseguiu Heinrich Böll erguer uma das obras mais emocionantes (no sentido mesmo da palavra “emocionante”: algo que toque feridas, tristezas e alegrias do homem comum, do homem que vemos todos os dias nas ruas, do primo, do irmão) e precisas do pós-guerra europeu.

“Emocionante” é uma palavra mais do que batida, e há muito tempo prometi a mim mesmo que nunca a usaria para falar de livros. O ponto é que ,,UndsagtekeineinzigesWort” carrega uma pobreza, uma miséria e uma ternura tão grandes que dificilmente o leitor termina a leitura sendo o mesmo de antes.

,,UndsagtekeineinzigesWort” é uma obra rasteira, como é o homem rasteiro – e disso vem sua estranha beleza, seu chiaroscuro entre o que é sagrado e o que é profano (de modo que, ao final, não se sabe mais o que é sagrado e o que é profano no mundo). Não há momentos de grande heroísmo, não ha grandes saltos filosóficos e elucubrações sobre estética. Há apenas pessoas e suas misérias, construídas elas com uma técnica narrativa bastante impressionante de secura e poucas descrições imagéticas.

Böll se assemelha ao compositor ou ao pintor minimalistas: escolhe dois ou três traços para descrever o objeto ou personagem, e a partir desses poucos traços ergue toda uma complexa personalidade, todos os impasses, todos os subentendidos dos quais somos nós feitos.

Devo admitir que foi um choque bem grande ler ,,UndsagtekeineinzigesWort” logo após reler um livro de Hermann Hesse (1877-1962). Hesse e Böll são quase opostos, são como água e vinho: Hermann Hesse é obviamente o vinho, voluptuoso de riqueza imagética e mental, muito “elevado” e raramente rasteiro; mas Heinrich Böll é a água nossa de todos os dias, simples e limpa.

Passar de Hesse a Böll foi como levar um tombo.

O título do livro de Böll vem de uma canção popular americana que recebeu vários nomes ao longo da história:foi por vezes chamada de "And He Never Said a Mumblin' Word", "TheyHungHimon a Cross", “TheycrucifiedmyLord” ou de "Crucifixion" (no YouTube é possível ouvir a canção “TheycrucifiedmyLord” na voz de Marian Anderson). O próprio Böll discretamente justifica a escolha do título do livro ao criar a famosa cena em que Käte (esposa de Fred – os dois personagens principais da narrativa) escuta trechos da música vindos da rua enquanto limpa a casa.

Quanto à estrutura narrativa do livro, há muito a se falar. A construção do livro é de impressionante sagacidade: Fred e Käte – personagens principais e casal que leva a narrativa adiante – alternam o posto de narrador do livro, ou seja: o primeiro capítulo é narrado por Fred, o segundo por Käte, o terceiro por Fred, o quarto por Käte e assim por diante. Essa alternância de ponto de vista parecer ser o próprio alicerce da profundidade da narrativa: a mesma situação narrada de modos diferentes, as discussões, o amor, a fé – tudo passa por dupla avaliação. As conclusões, obviamente, são diferentes; e disso nasce a desconcertante dubiedade da narrativa.

Além dessa alternância de foco narrativo, pode-se notar também o uso de repetições ao longo do livro (de frases, de situações), de modo que a cada repetição haja uma leitura diferente daquele elemento específico (por exemplo: o anúncio luminoso com os dizeres “VertraudichdeinemDrogistenan!” que fica piscando durante uma das cenas mais importantes do livro).

Os pontos interessantes relacionados à estrutura narrativa do livro são muitos. São também muitos os pontos interessantes em outros aspectos de ,,UndsagtekeineinzigesWort”. O que é também interessante (mas não no bom sentido) é o estranho fato de Heinrich Böll ter sido raríssimas vezes traduzido ao português. Não há explicação e é essa uma lacuna cultural nossa. Böll, afinal de contas, recebeu um Prêmio Nobel de Literatura. Seria importante que um tradutor de peso se dedicasse sistematicamente à tradução da obra completa de Heinrich Böll (à maneira de um Modesto Carone traduzindo Kafka) numa editora de peso no Brasil, em Portugal ou em outro país de língua portuguesa.

Termino então a coluna de hoje com esse apelo aos tradutores amigos, conhecidos e aos desconhecidos também. Heinrich Böllfoi, à época de minha primeira leitura de um livro seu, uma das melhores surpresas que tive em matéria de literatura. Espero que mais pessoas possam ter acesso à obra desse pequeno gigante.

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