Olhar Conceito

Sexta-feira, 19 de abril de 2024

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Rainer Maria Rilke: O Livro das Horas

Stéfanie Medeiros

Antes de começar a coluna de hoje, vou repetir o aviso dado na coluna anterior (e farei isso por mais algumas semanas); e que é: “Acho interessante esclarecer algo que já me parecia claro, mas que talvez ainda não esteja: este texto (ou os anteriores, ou os próximos), este texto não é uma análise propriamente dita – lhe falta profundidade de análise, profundidade essa que nem é meu objetivo desenvolver aqui nem me caberia alcançar num texto de jornal. Este texto é uma conversa com o leitor. Apenas isso. Somos o leitor e eu sentados conversando sobre esses artistas fantásticos. Aviso feito, vamos à conversa de hoje!”

Rainer Maria Rilke (1875-1926) segurou entre os dedos o século XIX e o XX, apalpou mesmo o que havia de menos concreto na virada do século, e disso criou – como eu disse algumas semanas atrás – uma das maiores obras de qualquer tempo e língua.

Seus primeiros poemas (publicou aos 19 anos, se não me falha agora a memória) já carregam alguma originalidade de imagem e de dicção, mas foi mesmo na virada do século com o livro ,,Das Stunden-Buch” (mais ou menos aos 29 ou 30 anos) que surge a grande obra de Rainer Maria Rilke. O que era apenas rastro de boa poesia nos livros anteriores torna-se, com ,,Das Stunden-Buch”, grande poesia realizada.,,Das Stunden-Buch” (“O Livro das Horas”, em português) é uma coletânea de poemas dividida em 3 partes: ,,Das Buch vom mönchischen Leben”, ,,Das Buch von der Pilgerschaft” e ,,Das Buch von der Armut und vom Tode” (“O Livro da Vida Monástica”, “O Livro da Peregrinação” e “O Livro da Pobreza e da Morte”).

Em seu primeiro livro (naquele publicado aos 19 anos, de nome ,,Leben und Lieder” –“Vida e Canções”) já é possível adivinhar entre os versos algo prestes a brotar, algo de importância. Ler este livro traz à mente um garimpeiro separando as pepitas de ouro das demais pedras à beira do rio.

O problema, no entanto, é que os versos ainda se espalhavam e esgarçavam numa atmosfera imprecisa, pouco concreta, pouco limpa, ainda muito influenciados como eram pelas primeiras leituras de Rilke – que à época ainda não conseguia digerir essas leituras para dali criar algo diferente, novo, limpo.

Depois daquele primeiro livro vieram ainda 6 ou 7 outros, que Rilke publicou entre os 19 e 24 anos, antes de ,,Das Stunden-Buch”. Nos final do século XIX e no início do século XX, Rilke passou 6 anos sem publicar, escrevendo aquele que seria o primeiro grande livro de sua produção: ,,Das Stunden-Buch”. Neste período conheceu figuras que tiveram grande influência sobre sua obra, como Lou Andreas-Salomé (1861-1937), e teve acesso a importantíssimos livros publicados mais ou menos naquela época, como aqueles de Nietzsche (1844-1900), e fez viagens que o afetaram profundamente, como a viagem à Rússia. Essa viagem e o encontro com a religiosidade russa, aliás, talvez tenham tido uma das influências mais duradouras na poesia de Rilke.

Do confluir desses elementos todos e outros publica Rilke em 1905 (nessa altura já um poeta radicalmente diferente daquele de anos atrás) seu ,,Das Stunden-Buch”.

,,Das Stunden-Buch”, como já dito anteriormente, é dividido em 3 partes. A atmosfera deste livro é bem diferente daquela dos anteriores: ainda que estes poemas ainda não tenham encontrado as coisas palpáveis do mundo diário (isso só aconteceria anos depois, no livro ,,Neue Gedichte” [“Novos Poemas”]), não são mais as imagens tão suspensas e ondulantes quanto nos poemas dos livros de antes. Os versos são mais justos (“justos” no sentido concreto mesmo de algo que cabe melhor, que não fica mais tão desengonçado) e mais enxutos, as palavras mais simples e repetitivas – como, aliás, devem mesmo ser, já que o livro procura ter alguma proximidade com a atmosfera “ideal” monástica, talvez medieval: de repetição, pobreza e limpeza de palavra.

O título do livro, aliás, é também tomado do universo monástico. O “Livro das Horas” era já na Idade Média um livro ricamente ornado com iluminuras e que compilava orações e rituais a serem feitos em horas específicas do dia, todos os dias, orações essas que seriam recitadas até que fossem decoradas.

Disso vem a atmosfera plácida, quieta. É quase possível ouvir o silêncio através desses poemas. Vide abaixo, num dos poemas de ,,Das Stunden-Buch”, em tradução de Maria Teresa Dias Furtado:

6.
“Senhor, dá a cada um a sua própria morte.
Morrer que venha dessa vida
durante a qual amou, sentido encontrou, teve má sorte”

Ou então em outro poema do mesmo livro (mas desta vez em tradução de Paulo Quintela, o renomado germanista português):

“Deus fala a cada um só antes de o fazer.
Então sai calado, com ele para fora da noite.
As palavras, porém, antes que cada um comece,
essas palavras nubladas, são:

Enviado pelos teus sentidos,
vai até ao limite da tua saudade;
dá-me roupagens.

Atrás das coisas cresce como incêndio,
que as suas sombras dilatadas
me cubram sempre todo.

Deixa que tudo te aconteça: beleza e pavor.
Só é preciso andar: nenhum sentimento é mais longínquo.
Não te deixes apartar de mim.
É perto a terra
a que chamam vida.

Hás-de reconhecê-la
pela sua gravidade.

Dá-me a tua mão.”

Importante fazer aqui uma pausa, parênteses: é quase óbvia a influência que essa poesia teve mais tarde na obra da brasileira Hilda Hilst. O poema citado acima, por exemplo, não dá muita margem às dúvidas.

Voltando ao texto: ,,Das Stunden-Buch” é, assim, o início da obra maior de Rilke e, como qualquer poesia que valha alguma coisa, entra tão fundo no seu tempo que acaba o sublimando em eternidade, em sem-tempo e todo-tempo. Assim é toda poesia maior.

Para terminar, mais um poema do livro (outra vez em tradução de Maria Teresa Dias Furtado):

7.

“Porque nós somos apenas a casca e a folha.
A grande morte, que cada um em si traz,
é o fruto à volta do qual tudo gira.”

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*A coluna Rubrica, publicada todas as segundas no Olhar Conceito, é assinada por Matheus Jacob Barreto. Matheus nasceu na cidade de Cuiabá/MT. Foi um dos vencedores das competições nacionais “III Prêmio Literário Canon de Poesia 2010” e “III Prêmio Literário de Poesia Portal Amigos do Livro de 2013”. Teve seus poemas vencedores publicados em antologias dos respectivos prêmios. Em outubro de 2012 participou da Bienal Internacional do Livro de São Paulo. Estuda na Universidade de São Paulo e mora na capital paulista. Escreveu o livro “É” (Editora Scortecci, 2013).

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