Olhar Conceito

Quinta-feira, 28 de março de 2024

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Thomas Mann: o colosso e a lupa

Stéfanie Medeiros

[Antes de começar a coluna de hoje, vou repetir o aviso dado na coluna anterior (e farei isso por mais algumas semanas); e que é: “Acho interessante esclarecer algo que já me parecia claro, mas que talvez ainda não esteja: este texto (ou os anteriores, ou os próximos), este texto não é uma análise propriamente dita – lhe falta profundidade de análise, profundidade essa que nem é meu objetivo desenvolver aqui nem me caberia alcançar num texto de jornal. Este texto é uma conversa com o leitor. Apenas isso. Somos o leitor e eu sentados conversando sobre esses artistas fantásticos. Aviso feito, vamos à conversa de hoje!]

Thomas Mann (1875-1955), Prêmio Nobel alemão de 1929, é também (como Hesse, como Rilke) dos autores de língua alemã mais lidos no ocidente. Publicou ,,Der Zauberberg”, ,,Buddenbrooks – Verfall einer Familie”, ,,Doktor Faustus”, ,,Der Tod in Venedig” (“A Montanha Mágica”, “Os Buddenbrooks”, “Doutor Fausto”, “Morte em Veneza”) e dezenas de outros dos mais lidos livros alemães no século XX. Eles alcançaram logo cedo grande reconhecimento nacional – e pouco depois internacional. Thomas Mann criou uma obra vastíssima qualitativa e quantitativamente: escreveu mais de 50 livros, entre romances, contos, peças teatrais e autobiografias. Num mesmo ano publicava ele às vezes 2 ou 3 livros.

Mann talvez seja o mais próximo que se possa chegar de “artista nacional” da era pós-Goethe. O próprio autor se dizia muito ligado às questões de algo que ele chamava de “natureza alemã”, algum substrato comum aos povos germânico que ele, então, transformava em meditação literária e depois em literatura de fato. Sobre este ponto é bem conhecida sua declaração quando de seu exílio nos Estados Unidos: ,,Wo ich bin, ist Deutschland. Ich trage meine deutsche Kultur in mir.” (”Onde estou eu, está a Alemanha. Carrego em mim minha cultura alemã”).

Os alemães têm até hoje um respeito e uma reverência por Thomas Mann que pouquíssimos outros autores experimentaram – algo que beira a nossa admiração pelo nosso (e do mundo) Machado de Assis.

Esse “pertencimento” ao povo alemão, no entanto, não o impediu de ver os horrores que o nacionalismo costuma trazer consigo. Thomas Mann já denunciava a monstruosidade do pensamento nazista muito antes da chegada dos nazistas ao poder, o que aconteceu em 1933 (enquanto Mann estava em férias com sua família na Suíça). Thomas Mann foi aconselhado a não voltar à Alemanha.

Em 1936 ele perdeu sua nacionalidade alemã e foi tido como inimigo da nação.

Interessante notar que os livros de Thomas Mann não foram queimados em maio de 1933 pelos nazistas junto com os de grande parte dos intelectuais alemães que não compactuavam com o governo. Provavelmente o fato de Mann ter recebido em 1929 o Prêmio Nobel poupou seus livros do fogo.


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Depois dessa bem curta apresentação do autor, vamos ao livro sobre o qual conversaremos hoje.

O livro ,,Der Tod in Venedig” (1911) (em português: “Morte em Veneza”) faz parte dum primeiro momento da escrita de Thomas Mann, aqui ainda muito preso ao idílio, às ideias herdadas dos séculos anteriores sobre a “beleza” e a “verdade”; muito preso a uma visão um tanto afastada dos problemas rasteiros do homem comum. Essa visão idílica se concretiza em ,,Der Tod in Venedig” na figura do artista Gustav von Aschenbach e sua busca pela (ou seu encontro inesperado com a) beleza.

,,Der Tod in Venedig” é descrito por alguns como um dos romances com mais características autobiográficas na vasta produção de Mann. Gustav von Aschenbach, o protagonista que é escritor e vai passar uma temporada no Lido por motivos de saúde frágil, encontra um garoto que parece concentrar tudo o que há de belo, misterioso e puro. Um jovem que, mais do que ter essas características todas, as encarna (neste ponto é difícil separar o ficcional do biográfico: o leitor que conhece um pouco a história do escritor Thomas Mann vai encontrar semelhanças entre ele e von Aschenbach).

Enfim, voltando à questão do jovem: o garoto em questão, Tadzio, é descrito como personificação do próprio Eros, como encarnação daquilo que a Arte procura ou deveria procurar. A beleza quase etérea, a fragilidade, o mistério e a distância (acima de tudo a distância) elevam Tadzio ao patamar da própria Arte, nele representada. Sobre esse ponto, reproduzo abaixo um trecho do livro (aqui em tradução de Maria Deling):


“Freqüente, quase constantemente, Aschenbach via Tadzio. Um espaço limitado, a regra da vida de cada um, faziam com que o belo lhe estivesse perto durante o dia, com curtas interrupções. Via-o e encontrava-o por toda parte: nos recintos comuns do hotel, nas frescas viagens pelas águas para a cidade e de volta de lá; na pompa da praça e, ainda, intercalando, nas ruas e caminhos, quando o acaso ajudava. Principalmente, porém, e com a mais feliz regularidade, as manhãs na praia lhe ofereciam larga oportunidade para dedicar-se à adoração e ao estudo da encantadora visão. Sim, esta ligação da felicidade, este diário início regular da graça das circunstâncias era bem o que o enchia de satisfação e alegria de viver, o que lhe fazia querida a estada, deixando um dia de sol estender-se agradavelmente para outro.

Levantava-se cedo, como devia fazê-lo, em palpitante atividade, e estava na praia antes da maioria, quando o sol ainda era fraco e o mar se estendia em brancura brilhante de sonhos matinais. Cumprimentava filantropicamente o guarda da entrada; cumprimentava também familiarmente o velho descalço de barba branca que lhe preparava o lugar, estendendo o toldo, colocando os móveis da cabina para fora da plataforma, e sentava-se. Três ou quatro horas eram todas suas, horas estas durante as quais o sol subia e ganhava fecundo poder, durante as quais o mar azulava mais e mais, durante as quais podia ver Tadzio.

Ele o via chegar, da esquerda, pela beira do mar; via-o aparecer detrás, entre as cabinas, ou, repentinamente e não sem susto feliz, descobria também que perdera sua chegada, que ele já estava presente e que, na sua roupa de banho azul e branca que agora era seu único traje na praia, já havia começado seu habitual passatempo no sol e na areia - esta graciosa, fútil, ociosamente inconstante vida, que era distração e descanso: passear, caminhar pela água, cavar, brincar de pegar, acampar e nadar; sempre vigiado e chamado pelas mulheres na plataforma que deixavam soar seu nome com voz de falsete: "Tadzio! Tadzio!", e para as quais vinha correndo com agitadas mímicas, a fim de contar-lhes aquilo a que tinha assistido, para lhes mostrar o que achara ou pegara: conchas, cavalos-marinhos, moluscos e caranguejos andando de lado. Aschenbach não compreendia uma palavra do que dizia, fosse o mais trivial, era um vago 
som melodioso no seu ouvido. Assim, o estranho da fala do menino erguia-se em música, um sol travesso entornava seu brilho prodigamente sobre ele e a sublime e extensa vista do mar profundo era sempre o fundo e o relevo de sua figura.

(...)

Seu cabelo cor de mel aninhava-se em cachos nas têmporas e na nuca, o sol iluminava a penugem do dorso superior; o delicado desenho das costelas, a simetria do peito apareciam pela cobertura justa do tronco; suas axilas ainda eram lisas como nas estátuas; os jarretes luziam 
e as veias azuladas faziam seu corpo parecer ser feito de uma matéria transparente. Que disciplina, que precisão de pensamento era expresso nesse perfeito corpo rijo e juvenil! A severa e pura vontade, porém, que em ação obscura conseguira trazer à luz esta obra divina - não era conhecida e familiar a ele, o artista? Não obrava também dentro dele quando, cheio de sóbria paixão, libertava das massas marmóreas da língua a esguia forma que divisara no espírito e que apresentava aos homens como estátua e espelho de beleza espiritual?

Estátua e espelho! Seus olhos envolveram a nobre figura à beira do azul e, em êxtase entusiasta, ele acreditou, com esse olhar, compreender o belo em si, a forma como pensamento divino, a única e pura perfeição que vive no espírito e da qual uma imagem e alegoria humana aqui estava erguida, leve e graciosa, para adoração. Isto era a embriaguez; e, sem hesitação, avaro mesmo, o artista envelhecido recebeu-a calorosamente. Seu cérebro girava, sua cultura entrou em efervescência, sua mente levantou pensamentos transmitidos desde sua juventude e que até então não tinham sido avivados pelo próprio fogo. Não estava escrito que o sol desviava nossa atenção do intelectual para coisas sensuais?”

Tadzio, neste sentido, é mais do que apenas um personagem da narrativa. Tadzio supera sua própria individualidade e é elevado a representação de uma ideia – um ideal – próxima e distante, próxima e distante. O adolescente, que pela rotina topa com von Aschenbach constantemente no hotel em que se hospedaram no Lido, não é mais ele mesmo: é agora o Belo, o Amor e a Verdade.

É claro que o livro de Mann levanta, portanto, a questão da homoafetividade. O homem já maduro que se apaixona pelo adolescente de beleza indescritível, aparentemente frágil e infinitamente sublime, que é por isso elevado a uma categoria sobre-humana. O protagonista Gustav von Aschenbach, que já fora casado e tinha uma filha, parece ele também encarnar algo: a sociedade do oeste europeu naquela virada de século, com seus conservadorismos que já não se aplicavam à realidade palpável, que já não davam conta do mundo-como-ele-é (se é que algum dia deram).

Essa insuficiência, aliás, é um dos grandes temas do livro. Von Aschenbach tem algo de decadente, algo de uma tradição que já não encontra lugar no mundo. Talvez este ponto (junto com a homoafetividade, é claro, que rendeu críticas duríssimas a Mann à época da publicação do livro) dê conta de uma parte do drama humano rica e sistematicamente construído por Thomas Mann.

O romance (ainda que sem contato físico) entre Gustav von Aschenbach e Tadzio é construído em cima de encontros casuais, olhares, sorte e aleatoriedade. Somada a isso há a fixação de von Aschenbach que o leva a, por vezes, seguir Tadzio e sua família pela cidade só pelo prazer de ver o jovem, de longe.

Von Aschenbach e Tadzio representam um amor que se pretende sobre-humano, que se pretende sublime e espiritual. Há, no entanto, uma fortíssima tensão sexual pelo menos por parte do mais velho – von Aschenbach –, que é negada e rechaçada como suja e impura, sim, mas que existe. Gustav von Aschenbach chega a ter sonhos com o rapaz.

A questão, é claro, causou alvoroço à época da publicação do livro, e mesmo o Prêmio Nobel que Thomas Mann recebeu deixou um pouco ,,Der Tod in Venedig” de lado em favor de outro livro seu, ,,Buddenbrooks – Verfall einer Familie” (“Os Buddenbrooks”).

Em relação à escrita de Mann, ao estilo narrativo, ,,Der Tod in Venedig” é exemplar. As construções frasais de Thomas Mann são conhecidas pelo tamanho: frases longuíssimas, com elementos encadeando frases e mais frases, descrições e detalhes acrescidos a isso numa minuciosidade impressionante. Não raro há nos livros de Mann páginas com apenas dois pontos finais! Essa característica muitas vezes se perde nas traduções, mas é muito clara no original alemão.

O leitor brasileiro deve agora imaginar que, somando-se a isso, há a questão da própria estrutura da língua alemã, que em alguns tempos verbais condena o verbo ao final de uma frase. É muito comum, portanto, que só se saiba o verbo da tal frase ao final da página, linhas e linhas depois de iniciada a digressão.

Além disso, a construção lenta de ideias e pensamentos nos personagens é bem característica: nada nos livros de Thomas Mann vem abruptamente. Tudo é lentamente construído, lentamente sugerido, os elementos vão aos poucos se juntando para formar uma ideia completa e de alguma envergadura. Tudo nos livros de Mann traz à mente a palavra “minucioso”. É a obra de arte construída letra por letra, palavra por palavra, frase por frase: o trabalho de Mann é – com lupa e pinça – erigir um colosso.

De qualquer forma, já em vida e um pouco mais após a morte foi Thomas Mann alçado ao posto mais alto da literatura em língua alemã, e já há algumas décadas seus livros dividem espaço com aqueles de Goethe, Schiller e de mais alguns pouquíssimos gigantes da literatura ocidental. Seus colossos construídos com lupa e pinça permanecem e permanecerão, testemunhas que são de seu tempo e dos tempos que vieram e virão ainda.

*A coluna Rubrica, publicada todas as segundas no Olhar Conceito, é assinada por Matheus Jacob Barreto. Matheus nasceu na cidade de Cuiabá/MT. Foi um dos vencedores das competições nacionais “III Prêmio Literário Canon de Poesia 2010” e “III Prêmio Literário de Poesia Portal Amigos do Livro de 2013”. Teve seus poemas vencedores publicados em antologias dos respectivos prêmios. Em outubro de 2012 participou da Bienal Internacional do Livro de São Paulo. Estuda na Universidade de São Paulo e mora na capital paulista.  Escreveu o livro “É” (Editora Scortecci, 2013).

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