Colunas
Rainer Maria Rilke: o poeta absoluto (II)
Autor: Matheus Jacob Barreto
17 Nov 2014 - 09:50
Stéfanie Medeiros
Rainer Maria Rilke foi - como já dito algumas semanas atrás - um poeta de língua alemã tido por muitos como um dos maiores poetas da história.
Falar sobre Rilke nunca é suficiente: sua matéria lírica sempre nos escapa, sempre passa entre os dedos, sempre se modifica. Talvez seja essa a característica comum aos grandes artistas: uma força que não arrefece, mas que se modifica; uma força cuja única constância é a inconstância.
Os dois pontos altos da produção de Rilke são seus ,,Sonette an Orpheus" e ,,Duineser Elegien" ["Os sonetos a Orfeu" e “Elegias de Duíno"], talvez acompanhados de perto por ,,Neue Gedichte" ["Novos Poemas"]. Esses "momentos" constituem o ápice de toda uma tradição ocidental de fazer poesia.
Os dez poemas de ,,Duineser Elegien" são a consciência espiritual de todo um ocidente em crise (e, como eu disse algum tempo atrás, estamos perpetuamente em crise como raça humana - e que bom); são o chamado metafísico da pedra, dos bichos e dos roseirais; são, enfim, o homem em choque com a Totalidade. Rilke relata em carta ao seu editor logo após escrever as Elegias: "(...) eu não sabia que poderia acontecer um tal furacão de espírito e coração! E que é possível sobreviver a ele!"
O poeta Rilke não foi o "eu": foi o "nós" e os "outros" também - principalmente os outros.
As ,,Duineser Elegien" fecharam um ciclo na história da poesia e abriram o seguinte. Elas são o ápice da poesia que se podia fazer à época (que é o ontem, o hoje e o amanhã também).
Abaixo, reproduzo na íntegra a primeira elegia, aqui em tradução de Karlos Rischbieter. Antes, porém, cito um verso que Rilke escreveu em outro de seus livros, mas que muito se aplica à experiência de ler (com atenção) esta primeira parte das ,,Duineser Elegien": ,,Du mußt dein Leben ändern" ("Força é mudares de vida" em tradução feita pelo poeta Manuel Bandeira). Abaixo, a Primeira das ,,Duineser Elegien":
“Quem, se eu gritasse, ouvir-me-ia na hierarquia
dos anjos? E mesmo que um deles me apertasse,
de repente, ao seu coração: eu padeceria perante sua
existência mais forte. Pois o belo nada mais é
do que o começo do Terrível que ainda suportamos;
e o admiramos porque, sereno, desdenha
destruir-nos. Todo anjo é terrível.
E assim me contenho e retenho o apelo
do meu soluço sombrio. Ai, a quem podemos
dirigir-nos? Aos anjos não, nem aos homens;
e os animais astutos já notaram
que nós não somos confiáveis
neste mundo definido. Resta-nos, talvez,
uma árvore qualquer na encosta, que revemos
todos os dias; resta-nos a estrada de ontem
e a fidelidade mimada de algum hábito
que gostou de nós e conosco ficou e não se foi.
E a noite, a noite, quando o vento, pleno de espaço
do mundo, roça nossa face, não seria ela - a desejada,
levemente enganosa - desafio penoso para
o coração solitário? Será ela mais fácil para os amantes?
Ai, eles apenas escondem, um do outro, o seu destino.
Não o sabes ainda? Lança o vazio dos teus braços
aos espaços que respiramos; talvez os pássaros
sintam o ar mais amplo em seu vôo mais íntimo.
Sim, as primaveras precisavam de ti. Algumas estrelas
queriam que as percebesses. Avolumou-se
uma onda, vinda do passado; ou então,
ao passares por uma janela aberta,
um violino se entregava. Tudo isto era missão.
Mas será que a cumpriste? Não estavas sempre
distraído pela espera, como se tudo
anunciasse uma amada? (Onde a abrigarias,
já que pensamentos amplos e estranhos te
povoam e muitas vezes ficam noite adentro.)
Se, porém, vier a angústia, canta as amantes; pois ainda
não foi suficientemente imortalizada a sua maravilhosa paixão.
Canta aquelas, que quase invejaste, as abandonadas, as que
achaste tão mais apaixonadas que as acalmadas. Retorna
sempre de novo o louvor inatingível;
considera; o herói se preserva; mesmo sua queda foi
apenas pretexto para existir; seu nascimento supremo.
Mas as amantes, estas a natureza exausta
recupera, como se não houvesse forças para criá-las
duas vezes. Pensaste o suficiente em Gaspara Stampa,
para que uma jovem qualquer,
abandonada pelo amante, se mire no seu exemplo maior,
e sinta: pudesse eu ser como ela!
Não deveríamos, afinal, fazer frutificar nossas dores
mais antigas? Não é tempo, que, amando,
nos livremos do amante e, tremendo, o superemos?
Como a flecha supera a corda, para, concentrada no
disparo, ser mais do que ela. Pois permanecer não há.
Vozes, vozes. Ouve coração meu, como só
ouviam os santos, quando um chamado intenso
os elevava do chão; eles, porém, permaneciam ajoelhados,
impossíveis criaturas, e nem prestavam atenção:
era assim que ouviam. Não que possas suportar a voz
de Deus, longe disto. Ouve, porém, a voz do vento,
a mensagem constante que se forma do silêncio.
Sentes agora o murmúrio daqueles jovens mortos.
Onde quer que entraste, nas igrejas de Roma
ou Nápoles, não te tocava, sereno, o seu destino?
Ou aquela inscrição, outro dia, na placa em Santa
Maria Formosa, não te impressionava ela, sublime?
O que queres de mim? Que eu remova, suavemente,
as aparências de injustiça, que perturbam, às vezes,
o movimento puro de suas almas.
Certamente é estranho não mais habitar
a terra, não mais praticar costumes apenas
apreendidos, não mais dar destino humano às
rosas e outras coisas promissoras; não mais ser
aquilo que se era, entre mãos infindamente angustiadas,
e esquecer, até, o próprio nome
e largá-lo, como um brinquedo quebrado.
Estranho, não mais desejar os desejos. Estranho
ver, flutuando no espaço, tudo que estava
relacionado. E o estar-morto é penoso
e pleno de tentativas para chegar a sentir, enfim,
um pouco de eternidade. - Mas os vivos cometem,
todos, o erro de distinguir em demasia.
Os anjos (dizem) muitas vezes não sabem se
andam entre vivos ou mortos. A torrente eterna
arrasta todas as idades pelos dois domínios,
para sempre e, nos dois, os sobrepuja.
Afinal não mais precisam de nós, os mortos precoces;
docemente se desacostumam do terrestre, como ternamente nós
nos desabituamos do seio materno. Mas, nós que precisamos
dos grandes mistérios; nós, que muitas vezes usamos a dor
para atingir o avanço abençoado -: poderíamos ser, sem eles?
Seria sem sentido a lenda que, outrora, no lamento por Linos,
surgiu a primeira e ousada música, penetrando árida rigidez;
que, no espaço assustado, abandonado - de súbito e para sempre -
por um jovem quase divino - o vazio, pela vez primeira,
entrou naquela vibração que agora nos arrebata, consola e ampara?”
Comentários no Facebook