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Quarta-feira, 24 de abril de 2024

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Rainer Maria Rilke: o poeta absoluto (II)

Stéfanie Medeiros

Rainer Maria Rilke foi - como já dito algumas semanas atrás - um poeta de língua alemã tido por muitos como um dos maiores poetas da história.


Falar sobre Rilke nunca é suficiente: sua matéria lírica sempre nos escapa, sempre passa entre os dedos, sempre se modifica. Talvez seja essa a característica comum aos grandes artistas: uma força que não arrefece, mas que se modifica; uma força cuja única constância é a inconstância.

Os dois pontos altos da produção de Rilke são seus ,,Sonette an Orpheus" e ,,Duineser Elegien" ["Os sonetos a Orfeu" e “Elegias de Duíno"], talvez acompanhados de perto por ,,Neue Gedichte" ["Novos Poemas"]. Esses "momentos" constituem o ápice de toda uma tradição ocidental de fazer poesia.


Os dez poemas de ,,Duineser Elegien" são a consciência espiritual de todo um ocidente em crise (e, como eu disse algum tempo atrás, estamos perpetuamente em crise como raça humana - e que bom); são o chamado metafísico da pedra, dos bichos e dos roseirais; são, enfim, o homem em choque com a Totalidade. Rilke relata em carta ao seu editor logo após escrever as Elegias: "(...) eu não sabia que poderia acontecer um tal furacão de espírito e coração! E que é possível sobreviver a ele!"

O poeta Rilke não foi o "eu": foi o "nós" e os "outros" também - principalmente os outros.


As ,,Duineser Elegien" fecharam um ciclo na história da poesia e abriram o seguinte. Elas são o ápice da poesia que se podia fazer à época (que é o ontem, o hoje e o amanhã também). 


Abaixo, reproduzo na íntegra a primeira elegia, aqui em tradução de Karlos Rischbieter. Antes, porém, cito um verso que Rilke escreveu em outro de seus livros, mas que muito se aplica à experiência de ler (com atenção) esta primeira parte das ,,Duineser Elegien": ,,Du mußt dein Leben ändern" ("Força é mudares de vida" em tradução feita pelo poeta Manuel Bandeira). Abaixo, a Primeira das ,,Duineser Elegien":

“Quem, se eu gritasse, ouvir-me-ia na hierarquia
dos anjos? E mesmo que um deles me apertasse,

de repente, ao seu coração: eu padeceria perante sua 

existência mais forte. Pois o belo nada mais é

do que o começo do Terrível que ainda suportamos;

e o admiramos porque, sereno, desdenha

destruir-nos. Todo anjo é terrível.

E assim me contenho e retenho o apelo

do meu soluço sombrio. Ai, a quem podemos

dirigir-nos? Aos anjos não, nem aos homens; 

e os animais astutos já notaram 

que nós não somos confiáveis 

neste mundo definido. Resta-nos, talvez, 

uma árvore qualquer na encosta, que revemos

todos os dias; resta-nos a estrada de ontem

e a fidelidade mimada de algum hábito

que gostou de nós e conosco ficou e não se foi. 

E a noite, a noite, quando o vento, pleno de espaço 

do mundo, roça nossa face, não seria ela - a desejada,

levemente enganosa - desafio penoso para

o coração solitário? Será ela mais fácil para os amantes?

Ai, eles apenas escondem, um do outro, o seu destino. 

Não o sabes ainda? Lança o vazio dos teus braços

aos espaços que respiramos; talvez os pássaros

sintam o ar mais amplo em seu vôo mais íntimo. 


Sim, as primaveras precisavam de ti. Algumas estrelas

queriam que as percebesses. Avolumou-se

uma onda, vinda do passado; ou então, 

ao passares por uma janela aberta, 

um violino se entregava. Tudo isto era missão.

Mas será que a cumpriste? Não estavas sempre

distraído pela espera, como se tudo

anunciasse uma amada? (Onde a abrigarias,

já que pensamentos amplos e estranhos te

povoam e muitas vezes ficam noite adentro.) 

Se, porém, vier a angústia, canta as amantes; pois ainda

não foi suficientemente imortalizada a sua maravilhosa paixão. 

Canta aquelas, que quase invejaste, as abandonadas, as que

achaste tão mais apaixonadas que as acalmadas. Retorna 

sempre de novo o louvor inatingível; 

considera; o herói se preserva; mesmo sua queda foi

apenas pretexto para existir; seu nascimento supremo.

Mas as amantes, estas a natureza exausta

recupera, como se não houvesse forças para criá-las 

duas vezes. Pensaste o suficiente em Gaspara Stampa,

para que uma jovem qualquer,

abandonada pelo amante, se mire no seu exemplo maior,

e sinta: pudesse eu ser como ela!

Não deveríamos, afinal, fazer frutificar nossas dores

mais antigas? Não é tempo, que, amando,

nos livremos do amante e, tremendo, o superemos? 

Como a flecha supera a corda, para, concentrada no 

disparo, ser mais do que ela. Pois permanecer não há.

Vozes, vozes. Ouve coração meu, como só 

ouviam os santos, quando um chamado intenso 

os elevava do chão; eles, porém, permaneciam ajoelhados,

impossíveis criaturas, e nem prestavam atenção: 

era assim que ouviam. Não que possas suportar a voz 

de Deus, longe disto. Ouve, porém, a voz do vento, 

a mensagem constante que se forma do silêncio. 

Sentes agora o murmúrio daqueles jovens mortos. 

Onde quer que entraste, nas igrejas de Roma 

ou Nápoles, não te tocava, sereno, o seu destino? 

Ou aquela inscrição, outro dia, na placa em Santa 

Maria Formosa, não te impressionava ela, sublime? 

O que queres de mim? Que eu remova, suavemente, 

as aparências de injustiça, que perturbam, às vezes, 

o movimento puro de suas almas. 


Certamente é estranho não mais habitar 

a terra, não mais praticar costumes apenas 

apreendidos, não mais dar destino humano às

rosas e outras coisas promissoras; não mais ser 

aquilo que se era, entre mãos infindamente angustiadas, 

e esquecer, até, o próprio nome 

e largá-lo, como um brinquedo quebrado. 

Estranho, não mais desejar os desejos. Estranho 

ver, flutuando no espaço, tudo que estava

relacionado. E o estar-morto é penoso 

e pleno de tentativas para chegar a sentir, enfim, 

um pouco de eternidade. - Mas os vivos cometem, 

todos, o erro de distinguir em demasia. 

Os anjos (dizem) muitas vezes não sabem se 

andam entre vivos ou mortos. A torrente eterna 

arrasta todas as idades pelos dois domínios, 

para sempre e, nos dois, os sobrepuja. 

Afinal não mais precisam de nós, os mortos precoces; 

docemente se desacostumam do terrestre, como ternamente nós 

nos desabituamos do seio materno. Mas, nós que precisamos

dos grandes mistérios; nós, que muitas vezes usamos a dor 

para atingir o avanço abençoado -: poderíamos ser, sem eles? 

Seria sem sentido a lenda que, outrora, no lamento por Linos,

surgiu a primeira e ousada música, penetrando árida rigidez;

que, no espaço assustado, abandonado - de súbito e para sempre - 

por um jovem quase divino - o vazio, pela vez primeira, 

entrou naquela vibração que agora nos arrebata, consola e ampara?”


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