Olhar Conceito

Sexta-feira, 29 de março de 2024

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Georg Kaiser: o absurdo em ,,Von morgens bis mitternachts"

Stéfanie Medeiros

[Antes de começar a coluna de hoje, vou repetir o aviso dado na coluna anterior (e farei isso por mais algumas semanas); a saber: “Acho interessante esclarecer algo que já me parecia claro, mas que talvez ainda não esteja: este texto (ou os anteriores, ou os próximos), este texto não é uma análise propriamente dita – lhe falta profundidade de análise, profundidade essa que nem é meu objetivo desenvolver aqui nem me caberia alcançar num texto de jornal. Este texto é uma conversa com o leitor. Apenas isso. Somos o leitor e eu sentados conversando sobre estes artistas. Aviso feito, vamos à conversa de hoje.]

[Segundo aviso: aproveito o fato de morar na Alemanha para falar hoje e nas próximas semanas sobre autores de língua alemã e/ou autores brasileiros que tiveram alguma relação com a literatura em língua alemã. Ao final do intercâmbio voltarei à nossa literatura em língua portuguesa.]


Georg Kaiser (1878-1945) foi escritor e dramaturgo alemão da virada do século XIX ao XX. Kaiser ficou conhecido e ganhou prestígio por suas peças teatrais, testemunhos de uma época de grande turbulência social e de ainda maiores inovações artísticas.

,,Von morgens bis mitternachts” (“Do amanhecer à meia-noite”, 1912) é uma dessas originalíssimas peças de Kaiser. O peça é levada adiante num ritmo frenético, rápido e disparatado demais para o andamento usual das peças escritas até então. É uma peça que pede a leitura num único ímpeto, do início ao fim, tantos são os acontecimentos e tão rápido eles vão se alternando.

,,Von morgens bis mitternachts” gira em torno de um caixa de banco. Além dele, há toda uma constelação de outros personagens que aparecem e somem rapidamente, às vezes até bruscamente. A história da peça beira o absurdo (e às vezes cai nele): um caixa que, encantado por uma italiana excêntrica, rouba o banco onde trabalha e vai ao encontro da estrangeira, pedindo que ela fuja com ele. A italiana recusa. O caixa, desesperado por ter roubado e não ter uso para aquele dinheiro em mãos, foge e, em delírio, começa a falar sozinho. Chega à casa onde sua família mora e em pouco tempo se entedia – além de assustar toda a família, que o crê louco. Sai dali, vai apostar em jogos. Todos os outros apostadores se reúnem ao seu redor.Chega o imperador ao salão de jogos, o caixa vai embora. O caixa chega então auma reunião da ,,Heilsarmee” (“Exército de Salvação”) e em pouco tempo é denunciado como ladrão de bancos à polícia por uma garota que ele destratara alguns momentos antes. Os policias chegam. Antes que possam fazer alguma coisa, o caixa se suicida.

Neste ritmo e nessa sequência quase aleatória se desenrola o texto. Como se pode notar, a peça tenta a todo momento se equilibrar sobre essa linha tênue que divide o comum do absurdo. O ritmo frenético da narrativa acompanha, em “crescendo”, a loucura do personagem principal, de modo que a narrativa é toda uma subida ao clímax – o suicídio do caixa.

É importante, no entanto, notar que as desditas do caixa (que, aliás, não tem nome – nem ele nem qualquer outro personagem. São sempre “moça”, “caixa”, “dama”, “mãe”, “filha”, “senhor”) não se resumem ao delírio de um homem qualquer numa situação qualquer. Fosse isso, a peça não alcançaria as proporções que alcançou.

O caixa dá voz a todo um sentimento ou espírito da época – o ,,Zeitgeist” do fim do século –, que no auge das inovações científicas e no meio de um turbilhão político cada vez mais alarmante trazia consigo algo como um sentimento de “apocalipse”, de “fim de mundo”. Toda a narrativa de ,,Von morgens bis mitternachts” se dá nessa beira de precipício que foi o final do século – e o encarna.

A sensação de que há pressa, de que há algo se perdendo e de alarme perante algum abismo domina ,,Von morgens bis mitternachts”.

Em relação à macroestrutura da peça, elase divide oficialmente em duas partes, mas é possível também tomar a peça como um conjunto de fragmentos, já que diversos momentos acabam abruptamente pra dar lugar a um outro com personagens e situação absolutamente diferentes. Apesar dos fragmentos, a peça parece pedir (como já dito acima) uma leitura rápida e quase febril. O tamanho do texto ajuda: a peça tem em média 60 páginas.

A peça é, assim, um texto de impacto. Sua leitura não é leve nem agradável. Seu texto não é contemplativo nem estático. Há sempre alguma urgência nos diálogos da peça, sempre – repito – uma pressa. Kaiser soube imprimir em seus textos o justo desespero de uma sociedade ocidental que se pega observando sua própria falência.

*A coluna Rubrica, publicada todas as segundas no Olhar Conceito, é assinada por Matheus Jacob Barreto. Matheus nasceu na cidade de Cuiabá/MT. Foi um dos vencedores das competições nacionais “III Prêmio Literário Canon de Poesia 2010” e “III Prêmio Literário de Poesia Portal Amigos do Livro de 2013”. Teve seus poemas vencedores publicados em antologias dos respectivos prêmios. Em outubro de 2012 participou da Bienal Internacional do Livro de São Paulo. Estuda na Universidade de São Paulo e mora na capital paulista. Escreveu o livro “É” (Editora Scortecci, 2013).


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