Olhar Conceito

Quarta-feira, 24 de abril de 2024

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Rainer Maria Rilke: outra canção de amor e morte

Danilo Bezerra/Olhar Direto

[Antes de começar a coluna de hoje, vou repetir o aviso dado na coluna anterior (e farei isso por mais algumas semanas); a saber: “Acho interessante esclarecer algo que já me parecia claro, mas que talvez ainda não esteja: este texto (ou os anteriores, ou os próximos), este texto não é uma análise propriamente dita – lhe falta profundidade de análise, profundidade essa que nem é meu objetivo desenvolver aqui nem me caberia alcançar num texto de jornal. Este texto é uma conversa com o leitor. Apenas isso. Somos o leitor e eu sentados conversando sobre estes artistas. Aviso feito, vamos à conversa de hoje.]

[Segundo aviso: aproveito o fato de morar na Alemanha para falar hoje e nas próximas semanas sobre autores de língua alemã e/ou autores brasileiros que tiveram alguma relação com a literatura em língua alemã. Ao final do intercâmbio voltarei à nossa literatura em língua portuguesa.]

Eis que mais uma vez me pego escrevendo sobre Rainer Maria Rilke (1875-1926) e me pego outra vez afirmando: Rilke está entre as dez vozes fundamentais da poesia de qualquer tempo, língua, escola. Rilke está já inapelavelmente ao lado de Dante, por exemplo. Ao lado de Eurípedes, de Goethe.

,,Die Weise von Liebe und Tod des Cornets Christoph Rilke” (1899) (em português “Canção de Amor e Morte do Porta-Estandarte Cristóvão Rilke”, na tradução de Cecília Meireles; “Canção de Amor e Morte do Alferes Cristóvão Rilke”, na tradução de Paulo Quintela) não é um livro escrito na fase mais produtiva de Rilke: o livro foi publicado quando Rilke tinha apenas 24 anos – ou seja: 6 anos antes da publicação de ,,Das Stunden-Buch” (“O Livro das Horas”, já comentado nesta coluna há algumas semanas) e 8 anos antes de ,,Neue Gedichte” (“Novos poemas”).

Isso quer dizer que ,,Die Weise von Liebe und Tod des Cornets Christoph Rilke” faz parte da produção de juventude no panorama da obra rilkeana. É uma das últimas obras desse primeiro período, e abre assim caminho para suas obras de maturidade, como o ,,Neue Gedichte”; e também, de modo mais pungente, para os seus dois maiores livros: ,,Die Sonette an Orpheus” (“Sonetos a Orfeu”) e ,,Duineser Elegien” (“Elegias de Duíno”).

O próprio Rilke deixara este livrinho (tem 10 páginas na edição da Reclam, por exemplo) um pouco de lado supostamente por não achá-lo à altura dos livros seguintes. O livro foi, no entanto, um de seus livros de maior repercussão em vida.

,,Die Weise von Liebe und Tod des Cornets Christoph Rilke” foi supostamente escrito em uma noite só, numa “noite de outono” (conta Rilke em carta a H. Pongs em 1924). O livro não é um romance, não é um conto, não é um poema: é um texto descrito como prosa poética. O ritmo fortíssimo domina a escrita literalmente da primeira linha à última do livro, assim como as numerosíssimas rimas – apesar de o texto ter sido escrito aparentemente em prosa.

Vejam vocês, por exemplo, os três primeiros parágrafos do livro. Reproduzo aqui tanto o original alemão quanto a tradução feita por Cecília Meireles:

,,Reiten, reiten, reiten, durch den Tag, durch die Nacht, durch den Tag.
Reiten, reiten, reiten.
Und der Mut ist so müde geworden und die Sehnsucht so groß. Es gibt keine Berge mehr, kaum einen Baum. Nichts wagt aufzustehen. Fremde Hütten hocken durstig an versumpften Brunnen. Nirgends ein Turm. Und immer das gleiche Bild. Man hat zwei Augen zuviel. Nur in der Nacht manchmal glaubt man den Weg zu kennen. Vielleicht kehren wir nächtens immer wieder das Stück zurück, das wir in der fremden Sonne mühsam gewonnen haben? Es kann sein. Die Sonne ist schwer, wie bei uns tief im Sommer. Aber wir haben im Sommer Abschied genommen. Die Kleider der Frauen leuchteten lang aus dem Grün. Und nun reiten wir lang. Es muß also Herbst sein. Wenigstens dort, wo traurige Frauen von uns wissen.”

(Cavalgar, cavalgar, cavalgar, pela noite, pelo do dia, pela noite.
Cavalgar, cavalgar, cavalgar.
E a coragem tornou-se tão lassa e a saudade tão grande. Não há mais montanhas, apenas uma árvore. Nada ousa levantar-se. Cabanas estrangeiras agacham-se sequiosas à beira de fontes lamacentas. Em nenhum lugar uma torre. E sempre o mesmo aspecto. É demais, ter dois olhos. Só à noite, às vezes, pensa-se conhecer o caminho. Talvez à noite tornemos sempre a refazer a jornada que penosamente cumprimos sob o sol estrangeiro? Pode ser. O sol é pesado como, entre nós, em pleno estio. Mas foi no estio que nos despimos. Os vestidos das mulheres brilhavam longamente sobre o verde. E agora há muito tempo que cavalgamos. Deve ser, pois, outono. Pelo menos lá onde tristes mulheres sabem de nós.)

Apesar de preservar as imagens evocadas no parágrafo original e um pouco do ritmo dele, a tradução infelizmente não consegue manter as fortíssimas rimas que o texto alemão muito orgulhosamente ostenta. Imagino que a tradução de Cecília Meireles tenha sido feita através da tradução francesa, não diretamente do original alemão. A tradução, no entanto, tem vários méritos e vale a leitura.

,,Die Weise von Liebe und Tod des Cornets Christoph Rilke” é, neste sentido (dos ritmos, das rimas internas, do formato inesperado e da mistura de gêneros) um texto consideravelmente moderno. Levemos em conta, por exemplo, que Rimbaud publicara sua prosa poética “Une saison en enfer” 20 e poucos anos antes, ou seja, neste sentido (mais do que apenas no sentido cronológico) é Rilke um contemporâneo do grande precursor da nova poesia: Rimbaud.

Portanto a prosa poética já era praticada também por outros artistas muito antes de Rilke. Em relação à forma poética, Rilke nunca fora um grande inovador: suas inovações se davam no interior do texto mais do que em sua aparência. É claro que forma e conteúdo se contaminam mutuamente, como se fossem uma coisa só (aliás, penso já há alguns anos que as palavras “forma” e “conteúdo” poderiam ser trocadas por uma única, já que são de fato uma coisa só), mas há sim alguma inclinação de Rilke à “reflexão por meio da poesia” muito mais do que ao formato que essa reflexão leva.

Rilke, portanto, não fora nenhum tipo de “enfant terrible” por tentar algumas experimentações artísticas (na época já basicamente consagradas, aliás. Ou seja: não muito inovadoras), mas é mesmo assim interessante notar que o grande sonetista Rainer Maria Rilke por algum motivo também escrevera em outros gêneros e formas artísticas.

,,Die Weise von Liebe und Tod des Cornets Christoph Rilke” é, assim, mais do que um simples ponto de curiosidade bibliográfica na Obra de Rilke: é, na verdade, um grande livro em si, forte apesar de suas limitações, vibrante apesar de ficar à sombra de seus outros livros.

O leitor desta coluna pode tirar prova daquilo que foi dito. Ao contrário de muitos livros aqui apresentados, este foi traduzido (e mais de uma vez, como eu já disse no início do texto). Sugiro a tradução do germanista português Paulo Quintela e aquela de nossa poetisa maior, Cecília Meireles.

*A coluna Rubrica, publicada todas as segundas no Olhar Conceito, é assinada por Matheus Jacob Barreto. Matheus nasceu na cidade de Cuiabá/MT. Foi um dos vencedores das competições nacionais “III Prêmio Literário Canon de Poesia 2010” e “III Prêmio Literário de Poesia Portal Amigos do Livro de 2013”. Teve seus poemas vencedores publicados em antologias dos respectivos prêmios. Em outubro de 2012 participou da Bienal Internacional do Livro de São Paulo. Estuda na Universidade de São Paulo e mora na capital paulista. Escreveu o livro “É” (Editora Scortecci, 2013).


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