Olhar Conceito

Quinta-feira, 25 de abril de 2024

Colunas

Bertolt Brecht: “Eu preciso saber”

Danilo Bezerra

[Antes de começar a coluna de hoje, vou repetir o aviso dado na coluna anterior (e farei isso por mais algumas semanas); a saber: “Acho interessante esclarecer algo que já me parecia claro, mas que talvez ainda não esteja: este texto (ou os anteriores, ou os próximos), este texto não é uma análise propriamente dita – lhe falta profundidade de análise, profundidade essa que nem é meu objetivo desenvolver aqui nem me caberia alcançar num texto de jornal. Este texto é uma conversa com o leitor. Apenas isso. Somos o leitor e eu sentados conversando sobre estes artistas. Aviso feito, vamos à conversa de hoje.]

[Segundo aviso: aproveito o fato de morar na Alemanha para falar hoje e nas próximas semanas sobre autores de língua alemã e/ou autores brasileiros que tiveram alguma relação com a literatura em língua alemã. Ao final do intercâmbio voltarei à nossa literatura em língua portuguesa.]


Bertolt Brecht (1898-1956) é um dos nomes mais influentes da literatura mundial. Dramaturgo e poeta alemão, talvez seja o nome mais citado quando se fala de teatro do século XX. Escreveu, entre outras, as peças ,,Mann ist Mann” (“Um homem é um homem”), ,,Die heilige Johanna der Schlachthöfe” (“Santa Joana dos Matadouros”), ,,Mutter Courage und ihre Kinder” (“Mãe Coragem e seus filhos”) e ,,Leben des Galilei” (“A vida de Galileu”). Sobre esta última conversaremos hoje – ou melhor: começaremos a conversar sobre ela. A peça ,,Leben des Galilei” pede mais de uma coluna, portanto o texto de hoje é apenas uma introdução a um texto futuro, mais detalhado e menos abrangente.

,,Leben des Galilei” (1939, “A vida de Galileu”) é, no contexto da obra de Brecht, ao mesmo tempo um de seus pontos altos e um ponto menos experimental: um “passo atrás” nas inovações formais, segundo o próprio autor; uma recuada. É, talvez por isso mesmo, uma peça mais acessível a um público comum, que pouca ou nenhuma importância dá a inovações formais; mais do que isso: um público que normalmente fica à margem da literatura que vai longe demais (há “longe demais?” – a pergunta costuma voltar de tempos em tempos, à procura de suas irmãs-respostas que são muitas e contraditórias).

Num primeiro plano, a peça simplesmente recria a vida do matemático, astrônomo e físico Galileu Galilei (1564–1642); numa leitura mais aplicada, no entanto, se percebe que a história de Galilei é também metáfora para o artista (ou cientista, ou estudioso – enfim: para os homens que levam a criação humana adiante) ante a censura e a perseguição daqueles que estão do lado privilegiado das relações sociais.

Há vários paralelos entre Galileu e Brecht. O recuo das experimentações formais em ,,Leben des Galilei” se espelha na própria história da peça: numa determinada passagem, Galileu Galilei desiste de escrever suas descobertas em latim e as escreve “na língua do povo”, para que assim a boa-nova se espalhasse entre o homem comum. De escritas na “língua do povo”, as descobertas passaram a ser cantadas e encenadas nas praças públicas.

Outros paralelos podem ser tateados: Bertolt Brecht, comunista, escreveu a peça quando de seu exílio causado pela ascensão dos nazistas ao poder na Alemanha; muito da pequenez da Igreja Católica na peça diante de inovações científicas de Galileu Galilei traz à mente a monstruosa reação do Nacional Socialismo à arte moderna de modo geral.

O texto da peça é, como sua estrutura, tradicional. Não há grandes estranhamentos nem quebras e a peça toda se desenvolve em certa harmonia entre escrita e estrutura – o que seria impensável em outras peças de Bertolt Brecht.

A peça concilia, então, sua função social de disseminar uma ideia (e isso sim esta peça tem em comum com o resto da produção de Brecht) com seu valor estético como obra de arte que é (neste caso uma forma mais tradicional, porém válida). Uma das “ideias” disseminadas é a de que os “avanços”, tão certo quanto serão refreados pelas estruturas de poder reinantes, devem ser levados adiante.

Galilei não é na peça um herói: é o contrário de um herói. O fato de em seus últimos anos ter ficado rendido à supervisão da Igreja Católica e sua recusa (ao ser ameaçado de morte) de tudo aquilo que descobrira nas últimas décadas configuram um deprimente fim para uma mente brilhante. Nessa caracterização do Galileu velho talvez haja algo de Bertolt Brecht quando da criação de ,,Leben des Galilei”: Galileu abre mão de sua liberdade e se admite covarde, mas ganha com o encarceramento tempo para escrever sua obra mais importante; Bertolt Brecht abre mão de suas inovações formais, mas alcança com isso uma obra na “língua do povo”.

A urgência e o horror do mundo eram maiores do que as teorias de estética – no tempo de Galileu, no tempo de Brecht e talvez no nosso.

Como já avisado no início desta coluna, num texto futuro seguirei com a conversa sobre ,,Leben des Galilei” de Brecht. Reproduzo abaixo um trecho tirado da cena “Uma conversa” da peça ,,Leben des Galilei”, aqui em tradução de Roberto Schwarz. Creio que o trecho dá a ver o grande mote da peça.

“(...)
O Pequeno Monge (muito agitado) — São os motivos mais altos que nos mandam calar, é a paz de espírito dos miseráveis.
Galileu — O senhor quer ver um relógio de Cellini? Eu tenho um aqui, foi o cocheiro do Cardeal Bellarmino quem trouxe hoje cedo, um presente. Meu caro, se eu deixo intata a paz de espírito, digamos, dos seus bons pais, a autoridade me recompensa, me oferece o vinho que eles colheram com o suor do rosto deles, rosto criado, sabidamente, à imagem e semelhança de Deus. Se eu me dispusesse a calar, os motivos seriam indiscutivelmente baixos: vida fácil, nada de perseguições, etc.
O Pequeno Monge — Senhor Galileu, eu sou padre.
Galileu — O senhor também é físico. E o senhor viu que Vénus tem fases. Olhe lá fora! (Aponta pela janela). Você está vendo o Príapo, ali na fonte, ao lado do louro? O deus dos jardins, dos pássaros e dos ladrões, rústico, obsceno, dois mil anos de idade! Ele mentia menos. Está bem, já parei, também sou filho da Igreja. Mas o senhor conhece a sátira oitava de Horácio? Estive relendo nesses dias, ele empresta algum equilíbrio. (Apanha um pequeno livro) É esse Príapo mesmo que fala, uma estatueta posta nos jardins do Esquilino. Começa assim: “Um toro de figueira, madeira inútil / Eu era, quando o carpinteiro, incerto / Se faria Príapo ou uma banqueta, / Preferiu o deus...” O Senhor acha que Horácio aceitaria, se lhe tirassem a banqueta do poema e pusessem uma mesa no lugar dela? Senhor, é o meu senso de beleza que protesta, se Vênus ficar sem fases no meu quadro do universo! Nós não saberemos inventar máquinas para bombear água dos rios, se não pudermos estudar a máquina que está diante dos nossos olhos, a maior de todas, a dos corpos celestes. A soma dos ângulos de um triângulo não pode ser alterada segundo os interesses da Cúria. Eu não posso calcular o movimento dos corpos no espaço de maneira que explique também o galope das bruxas e das vassouras.
O Pequeno Monge — Mas o senhor não acha que a verdade, se for verdade, se afirma mesmo sem a gente?
Galileu — Não, não, não. Só se afirma a verdade que nós afirmamos; a vitória da razão só pode ser a vitória dos homens racionais.
(...)”

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*A coluna Rubrica, publicada todas as segundas no Olhar Conceito, é assinada por Matheus Jacob Barreto. Matheus nasceu na cidade de Cuiabá/MT. Foi um dos vencedores das competições nacionais “III Prêmio Literário Canon de Poesia 2010” e “III Prêmio Literário de Poesia Portal Amigos do Livro de 2013”. Teve seus poemas vencedores publicados em antologias dos respectivos prêmios. Em outubro de 2012 participou da Bienal Internacional do Livro de São Paulo. Estuda na Universidade de São Paulo e mora na capital paulista. Escreveu o livro “É” (Editora Scortecci, 2013).

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