Olhar Conceito

Quinta-feira, 25 de abril de 2024

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Gottfried Benn: a medida do grotesco

[Antes de começar a coluna de hoje, vou repetir o aviso dado na coluna anterior (e farei isso por mais algumas semanas); a saber: “Acho interessante esclarecer algo que já me parecia claro, mas que talvez ainda não esteja: este texto (ou os anteriores, ou os próximos), este texto não é uma análise propriamente dita – lhe falta profundidade de análise, profundidade essa que nem é meu objetivo desenvolver aqui nem me caberia alcançar num texto de jornal. Este texto é uma conversa com o leitor. Apenas isso. Somos o leitor e eu sentados conversando sobre estes artistas. Aviso feito, vamos à conversa de hoje.]

[Segundo aviso: aproveito o fato de morar na Alemanha para falar hoje e nas próximas semanas sobre autores de língua alemã e/ou autores brasileiros que tiveram alguma relação com a literatura em língua alemã. Ao final do intercâmbio voltarei à nossa literatura em língua portuguesa.]

Gottfried Benn (1886-1956) foi um poeta, médico e ensaísta alemão, uma das figuras mais influentes na Alemanha entre as décadas de 30 e 50. É considerado a figura maior do Movimento Expressionista em língua alemã – uma pausa agora: em relação a essa (e outras) categorizações, devo dizer que não gosto muito da ideia da divisão por escolas à qual a história da literatura é submetida. Sei também que é inevitável que haja essas divisões (principalmente em casos como o do Expressionismo, que foi conscientemente organizado como Movimento Literário pelos próprios poetas [vide discurso de Kasimir Edschmid de 1917]), mas fica aqui registrado que elas não me agradam muito.

Voltando a Benn: Gottfried Benn foi uma figura controversa. Quando os nazistas assumiram o poder em 1933, Benn publicou um livro no qual discursava com simpatia pelo Nacional Socialismo (Der neue Staat und die Intellektuellen (1933) – O novo Estado e os Intelectuais), e toda a recepção posterior de sua obra literária esteve de certo modo influenciada por essa sua tomada de partido. Anos mais tarde Benn assumiria o seu erro ao apoiar a ditadura Nacional Socialista – o que não impediu, entretanto, que sua obra continuasse por anos à sombra desse seu erro.

A obra de Gottfried Benn é marcada pelo cuidado extremo com as formas poéticas tradicionais e simultaneamente com um verso livre extrema e ostensivamente planejado (quem não se lembra de T. S. Eliot dizendo que nenhum verso livre é de fato livre para quem quer fazer um bom trabalho?). Os poemas que escreveu nas formas poéticas tradicionais não têm, no entanto, a placidez e a tranquilidade que o verso clássico supostamente teria: os poemas de Benn são, isso sim, cheios de um desespero e de um sentimento de “desistência do mundo”. Talvez por isso mesmo tenha ele usado as formas tradicionais: às vezes só a perfeição formal torna suportáveis o desespero e a exasperação – isso já disse o grande Saint-John Perse sobre nosso Bruno Tolentino.

Em poemas nos quais Benn resolve utilizar o verso livre (como no poema ,,Kleine Aster” – “Pequena sécia”), o faz com tanto cuidado e com tanto perfeccionismo para com as estranhíssimas imagens criadas que o resultado é sempre perturbador; perturbadoramente belo – e sombrio também.

Aliás, o adjetivo “sombrio” costuma descrever relativamente bem aspetos de boa parte dos poemas de Benn. Em poemas como o ,, Mann und Frau gehn’ durch die Krebsbaracke” (“Homem e mulher passam pelo pavilhão de pacientes com câncer”) Benn utiliza seus conhecimentos médicos e descreve doenças em detalhes – mais uma vez a palavra! – sombrios e francamente perturbadores. É normalmente muito difícil esquecer que Benn foi, além de poeta, médico: o vocabulário relacionado às infecções e às doenças contagiosas, por exemplo, aparece com certa frequência em seus poemas.

Desta forma, a poesia de Benn foge de qualquer leveza e aparentemente de qualquer noção de beleza clássica (apesar de utilizar o verso tradicional, criando assim uma interessantíssima ironia artística entre o mote grotesco e o metro clássico). Assim, um artista brasileiro semelhante a Gottfried Benn seria Augusto dos Anjos.

Reproduzo, por fim, dois poemas de Gottfried Benn: “Pequena sécia” (“sécia” é uma flor), traduzido por Luís Costa (em alemão: ,,Kleine Aster”); e “Palavra, frase”, traduzido por Vasco Graça Moura (em alemão: ,,Ein Wort”).


PEQUENA SÉCIA

Estenderam sobre a mesa o corpo de um
distribuidor de cerveja que se afogou.
alguém lhe havia encaixado entre os dentes
uma sécia , de um lilás escuro- claro.
Quando, com um longo escalpelo,
num corte subcutâneo,
a partir do peito,
arranquei a língua e o palato,
devo ter-lhe tocado,
pois resvalou para cima do cérebro
que se encontrava ali mesmo ao lado.
Então, quando o cosia,
coloquei-a na cavidade torácica,
entre as maravalhas.
Bebe até te fartares no teu vaso!
Descansa em paz,
pequena sécia!



PALAVRA, FRASE

Palavra, frase - E as cifras falam
a vida vivida, súbito sentido,
o sol estaca, as esferas calam,
tudo se concentra a ela volvido.

Palavra - um brilho, um voo, um fogo,
um jacto de chamas, de estrelas um traço -
em redor do mundo e de mim há logo
o escuro medonho no vazio espaço.

*A coluna Rubrica, publicada todas as segundas no Olhar Conceito, é assinada por Matheus Jacob Barreto. Matheus nasceu na cidade de Cuiabá/MT. Foi um dos vencedores das competições nacionais “III Prêmio Literário Canon de Poesia 2010” e “III Prêmio Literário de Poesia Portal Amigos do Livro de 2013”. Teve seus poemas vencedores publicados em antologias dos respectivos prêmios. Em outubro de 2012 participou da Bienal Internacional do Livro de São Paulo. Estuda na Universidade de São Paulo e mora na capital paulista. Escreveu o livro “É” (Editora Scortecci, 2013).

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