Olhar Conceito

Sexta-feira, 19 de abril de 2024

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Franz Kafka: o habitual, o absurdo e o desconforto

Stéfanie Medeiros

[Antes de começar a coluna de hoje, vou repetir o aviso dado na coluna anterior (e farei isso por mais algumas semanas); a saber: “Acho interessante esclarecer algo que já me parecia claro, mas que talvez ainda não esteja: este texto (ou os anteriores, ou os próximos), este texto não é uma análise propriamente dita – lhe falta profundidade de análise, profundidade essa que nem é meu objetivo desenvolver aqui nem me caberia alcançar num texto de jornal. Este texto é uma conversa com o leitor. Apenas isso. Somos o leitor e eu sentados conversando sobre estes artistas. Aviso feito, vamos à conversa de hoje.]

[Segundo aviso: aproveito o fato de morar na Alemanha para falar hoje e nas próximas semanas sobre autores de língua alemã e/ou autores brasileiros que tiveram alguma relação com a literatura em língua alemã. Ao final do intercâmbio voltarei à nossa literatura em língua portuguesa.]

Franz Kafka (1883-1924) é um dos autores de expressão alemã mais lidos no ocidente. Talvez Thomas Mann e Goethe ocupem um lugar similar entre as preferências do leitor de hoje em dia. Kafka, como já foi dito em outra coluna sobre o autor, não só descreveu o mundo contemporâneo (e somos, de muitos modos e como normalmente ocorre com os clássicos, seus contemporâneos), mas o representou com personagens.

Seus textos, frágeis monumentos, são o retrato de um mundo que se acabava para dar lugar a uma nova época da existência humana – sem, porém, saber se essa nova época viria de fato. Seus textos trazem à mente um cego que anda sempre confiante e em linha reta, sem se importar ou sem saber se o próximo passo será precipício adentro.

Um dos modos de representar esse desespero de uma sociedade velha que não sabe se uma nova fase virá (e, se vier, como) é usar em literatura todo o aparato desse mundo velho (fórmulas frasais, costumes, verdades estabelecidas, hábitos) frente a situações novas, surreais: e desse confronto entre o habitual e o novo representar o desconforto e o absurdo, representar a realidade e o desconcerto de um mundo que não sabe mais o que fazer consigo mesmo.

Para falar em termos mais concretos, Kafka pode representar esse confronto – por exemplo – através de uma situação inusitada descrita com uma linguagem própria da burocracia (onde tudo é planejado, onde tudo está em seu lugar, onde tudo funciona como deve funcionar). Vide trecho da narrativa ,,Der neue Advokat” (“O novo advogado”, aqui em tradução de Modesto Carone):

“Temos um novo advogado, o Dr. Bucéfalo. Seu exterior lembra pouco o tempo em que ainda era o cavalo de batalha de Alexandre da Macedônia. Quem no entanto está familiarizado com as circunstâncias percebe alguma coisa. Assim é que, recentemente, eu mesmo vi, na escadaria do fórum, um humilde oficial de justiça admirar, com o olhar perito do pequeno frequentador contumaz das corridas de cavalos, o advogado quando este, empinando as coxas, galgava degrau por degrau o mármore que ressoava.”

No exemplo supracitado, um cavalo torna-se advogado e sobe “galgando” os degraus de mármore do fórum. A situação, no entanto, é descrita com a naturalidade e frieza com que se conta um acontecimento desinteressante a qualquer colega de trabalho entre um café e outro.

Voltando à ideia que expus no início deste texto, e agora munido do exemplo: as ferramentas todas do narrador estão ali, mas são ferramentas que não dão mais conta do mundo do qual faz parte. A ideia traz à mente alguém que, só tendo ternos, vai à praia e se vê de paletó, gravata e mala frente ao mar e debaixo de um sol fortíssimo.

Aliás, como uma ideia puxa a outra e este texto não se pretende análise formal (e, portanto, posso me dar algumas liberdades), sugiro ao leitor desta coluna que procure na internet a foto de Franz Kafka na praia – de roupa de banho, sim, mas tão desconfortável e desajustado quanto qualquer personagem seu estaria. Acho que a imagem dá uma boa noção daquilo que escrevi aqui sobre seu modo de narrar.

O texto ,,Der neue Advokat” aqui citado foi apenas usado para exemplificar aquilo que acredito encontrar em quase todos os textos do autor. Esse “choque” ou “desconcerto” talvez seja a característica mais marcante dos textos de Kafka, e são – creio eu – o testemunho da humanidade desajustada, desconfortável em seu lugar no mundo.

Por fim, reproduzo abaixo o resto da (curtíssima) narrativa ,,Der neue Advokat”, cujo primeiro parágrafo citei um pouco acima. A tradução, vale lembrar, é de Modesto Carone.

“Temos um novo advogado, o Dr. Bucéfalo. Seu exterior lembra pouco o tempo em que ainda era o cavalo de batalha de Alexandre da Macedônia. Quem no entanto está familiarizado com as circunstâncias percebe alguma coisa. Assim é que, recentemente, eu mesmo vi, na escadaria do fórum, um humilde oficial de justiça admirar, com o olhar perito do pequeno frequentador contumaz das corridas de cavalos, o advogado quando este, empinando as coxas, galgava degrau por degrau o mármore que ressoava.

Em geral a Ordem dos Advogados aprova a admissão de Bucéfalo. Com espantosa perspicácia dizem a si mesmos que, no ordenamento social vigente, Bucéfalo está numa situação difícil e que tanto por isso como por causa do seu significado na história universal, ele de qualquer modo merece consideração. Hoje em dia - isso ninguém pode negar - não existe nenhum grande Alexandre. É verdade que muitos sabem matar; também não falta destreza para atingir o amigo com a lança por cima da mesa do banquete; e para muitos a Macedônia é estreita demais, a ponto de amaldiçoarem Felipe, o pai; mas ninguém, ninguém, é capaz de ser o guia para a Índia. Já naquela época as portas para a Índia eram inalcançáveis, mas a direção delas estava traçada pela espada do rei. Hoje as portas estão removidas para outro lugar completamente diferente, mais longe e mais alto; ninguém indica a direção; muitos seguram a espada, mas só para brandi-la; e o olhar que quer segui-la se confunde.

Talvez por isso o melhor realmente seja, como Bucéfalo fez, mergulhar nos códigos da lei. Livre, sem a pressão da virilha do cavaleiro sobre os flancos, à luz da lâmpada silenciosa, distante do fragor da batalha de Alexandre, ele lê e vira as folhas dos nossos velhos livros.”

*A coluna Rubrica, publicada todas as segundas no Olhar Conceito, é assinada por Matheus Jacob Barreto. Matheus nasceu na cidade de Cuiabá/MT. Foi um dos vencedores das competições nacionais “III Prêmio Literário Canon de Poesia 2010” e “III Prêmio Literário de Poesia Portal Amigos do Livro de 2013”. Teve seus poemas vencedores publicados em antologias dos respectivos prêmios. Em outubro de 2012 participou da Bienal Internacional do Livro de São Paulo. Estuda na Universidade de São Paulo e mora na capital paulista. Escreveu o livro “É” (Editora Scortecci, 2013).

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