Olhar Conceito

Quinta-feira, 28 de março de 2024

Colunas

Schiller: o gênio e sua ,,Maria Stuart"

 [Antes de começar a coluna de hoje, vou repetir o aviso dado na coluna anterior (e farei isso por mais algumas semanas); a saber: “Acho interessante esclarecer algo que já me parecia claro, mas que talvez ainda não esteja: este texto (ou os anteriores, ou os próximos), este texto não é uma análise propriamente dita – lhe falta profundidade de análise, profundidade essa que nem é meu objetivo desenvolver aqui nem me caberia alcançar num texto de jornal. Este texto é uma conversa com o leitor. Apenas isso. Somos o leitor e eu sentados conversando sobre estes artistas. Aviso feito, vamos à conversa de hoje.]

[Segundo aviso: aproveito o fato de morar na Alemanha para falar hoje e nas próximas semanas sobre autores de língua alemã e/ou autores brasileiros que tiveram alguma relação com a literatura em língua alemã. Ao final do intercâmbio voltarei à nossa literatura em língua portuguesa.]


Friedrich Schiller ([1759-1805] ou “Friedrich von Schiller”, já que recebera em 1802 o título de nobreza assinalado em seu nome pela partícula “von”) foi um poeta e historiador alemão, tido como o maior poeta da língua alemã – ao lado de Johann Wolfgang von Goethe.

Schiller viveu pouco, ao contrário de Goethe, mas produziu tanto e com uma qualidade tão inacreditável que suas obras são hoje postas no mesmo patamar daquelas de Goethe (Schiller morreu aos 45 anos e Goethe aos 82). Pouquíssimas vozes na poesia alemã chegaram tão alto quanto aquela de Schiller: a aliança entre seu apuro formal, sua colossal erudição e sua capacidade de fazer da forma fechada (o soneto, por exemplo) uma obra de total liberdade é um evento que raramente se repetiu na história.

Schiller foi um desses poucos poetas capazes de usar uma forma fixa – sem serem por ela usados. Explico: na obra madura de Schiller, quando ele e Goethe abandonam os ideais do movimento ,,Sturm und Drang”, o conhecimento e o domínio que o poeta tinha de todas as métricas e formas fixas imagináveis lhe levou àquele raríssimo estado de total controle sobre sua arte. A esse estado de “total controle” chegaram poucos artistas, repito. O escultor Rodin, o poeta Rilke, as poetisas Cecília Meireles e Sophia de Mello Breyner Andresen, o compositor Arvo Pärt, Goethe: estes e outros (poucos) artistas alcançaram a total liberdade onde não há liberdade alguma. Encontraram a liberdade nas amarras da forma.

Aviso ao leitor desta coluna: explicarei a próxima frase no parágrafo seguinte! Sem pânico! Lá vai: a obra ,,Maria Stuart” (1800) de Schiller é uma peça teatral em cinco atos escrita em 4033 versos quase que inteiramente em pentâmetros iâmbicos não rimados, ora em cadência masculina, ora em cadência feminina.

Isso quer dizer que a) a peça é escrita em versos, b) esses versos têm dez sílabas poéticas, c) depois de uma sílaba poética átona vem sempre uma sílaba tônica, formando assim um verso de sílabas fraca-FORTE-fraca-FORTE-fraca-FORTE-fraca-FORTE-fraca-FORTE, d) às vezes a última sílaba do verso é tônica, às vezes não, e) os versos não são rimados (com algumas exceções).

Digo “quase que inteiramente em pentâmetros iâmbicos” porque há alguns versos mais curtos e outros mais longos na peça ,,Maria Stuart”, e essas quebras no ritmo do poema têm efeitos positivos na apreensão de certas frases e ideias (algo como uma pausa dramática para que especificamente aquele verso “ecoe” e chame a atenção do leitor).

A partir destes elementos o leitor já percebe o absoluto rigor que Schiller imprimiu à peça, retomando a estrutura de peças à época já canônicas, como aquelas de um Shakespeare, por exemplo. Este novo momento da produção de Schiller (quando comparado à sua produção de juventude no seio do movimento ,,Sturm und Drang”) reflete uma guinada em direção às formas clássicas, sendo por isso chamada essa fase de “fase classicista” ou “fase clássica” pelos críticos literários. Como eu já disse algumas vezes em textos anteriores, não me agrada muito essa nomenclatura nos estudos literários; aqui, no entanto, acho que cabe a classificação.

A trama da peça gira em torno de Maria Stuart, rainha da Escócia aprisionada e acusada de conspiração por Elisabeth I, rainha da Inglaterra. Maria era católica e Elisabeth protestante, o que por si só já geraria conflitos entre as duas monarcas. No entanto, o epicentro do conflito entre as duas é o fato de a ascensão de Elisabeth ao trono ser vista por alguns como ilegítima, sendo ela considerada pelos católicos uma filha bastarda de Henrique VIII (já que era fruto do segundo casamento deste). Sendo assim, Maria Stuart se declarava herdeira legítima da coroa inglesa e foi por isso acusada por Elisabeth I de conspiração.

A peça se restringe aos últimos dias de Maria Stuart, já aprisionada e tentando encontrar um jeito de fugir para a França, onde supostamente lhe dariam proteção e apoio numa futura tentativa de tomar a coroa inglesa.

Este colunista que vos fala precisaria (talvez mais do que em qualquer outra semana) escrever mais de um texto sobre a peça Maria Stuart, tão impecável é esta obra do mestre Schiller. É preciso, por exemplo, escrever um texto inteiro só sobre os momentos nos quais a rima é usada na peça (nos momentos de grande tensão ou de declarações amorosas); ou então sobre os momentos em que a indicação de Schiller para a fala de Elisabeth passa do simples nome “Elisabeth” para “Rainha” (momentos nos quais a rainha deixa de lado as emoções e age com o pulso firme de uma monarca de fato). Sobre esses e outros aspectos da peça ,,Maria Stuart” eu precisaria (e irei) escrever no futuro.

Por enquanto acho que basta esta introdução e este apelo de leitor para leitor: leia ,,Maria Stuart” de Schiller o quanto antes! É uma das maiores obras da literatura em qualquer língua e em qualquer época. O original alemão está disponível na internet, assim como traduções para várias línguas (há uma tradução para o português feita pelo grande Manuel Bandeira, de modo que, creio eu, o leitor que não fala alemão estará bem servido).

Como dito antes, eu infelizmente não encontrei a tradução para o português. Reproduzo aqui, então, um trecho da peça em alemão, já pedindo desculpas ao leitor que não fala essa língua. Quanto aos que leem, aí vai (terceiro ato, final da quinta cena):

“(...)

MARIA (von Zorn glühend, doch mit einer edeln Würde):

Ich habe menschlich, jugendlich gefehlt,
Die Macht verführte mich, ich hab es nicht
Verheimlicht und verborgen, falschen Schein
Hab ich verschmäht mit königlichem Freimut.
Das Ärgste weiß die Welt von mir, und ich
Kann sagen, ich bin besser als mein Ruf.
Weh Euch, wenn sie von Euren Taten einst
Den Ehrenmantel zieht, womit Ihr gleißend
Die wilde Glut verstohlner Lüste deckt.
Nicht Ehrbarkeit habt Ihr von Eurer Mutter
Geerbt: man weiß, um welcher Tugend willen
Anna von Boleyn das Schafott bestiegen.

SHREWSBURY (tritt zwischen beide Königinnen):

O Gott des Himmels! Muß es dahin kommen!
Ist das die Mäßigung, die Unterwerfung,
Lady Maria?

MARIA:

Mäßigung! Ich habe
Ertragen, was ein Mensch ertragen kann.
Fahr hin, lammherzige Gelassenheit,
Zum Himmel fliehe, leidende Geduld,
Spreng endlich deine Bande, tritt hervor
Aus deiner Höhle, langverhaltner Groll –
Und du, der dem gereizten Basilisk
Den Mordblick gab, leg auf die Zunge mir
Den gift'gen Pfeil –

SHREWSBURY:

O sie ist außer sich!
Verzeih der Rasenden, der schwer Gereizten!

(Elisabeth, für Zorn sprachlos, schießt wütende Blicke auf Marien.)

LEICESTER (in der heftigsten Unruhe, sucht die Elisabeth hinwegzuführen):

Höre
Die Wütende nicht an! Hinweg, hinweg
Von diesem unglücksel'gen Ort!

MARIA:

Der Thron von England ist durch einen Bastard
Entweiht, der Briten edelherzig Volk
Durch eine list'ge Gauklerin betrogen.
– Regierte Recht, so läget Ihr vor mir
Im Staube jetzt, denn ich bin Euer König.

(Elisabeth geht schnell ab, die Lords folgen ihr in der höchsten Bestürzung.)”

*A coluna Rubrica, publicada todas as segundas no Olhar Conceito, é assinada por Matheus Jacob Barreto. Matheus nasceu na cidade de Cuiabá/MT. Foi um dos vencedores das competições nacionais “III Prêmio Literário Canon de Poesia 2010” e “III Prêmio Literário de Poesia Portal Amigos do Livro de 2013”. Teve seus poemas vencedores publicados em antologias dos respectivos prêmios. Em outubro de 2012 participou da Bienal Internacional do Livro de São Paulo. Estuda na Universidade de São Paulo e mora na capital paulista.  Escreveu o livro “É” (Editora Scortecci, 2013).

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