Olhar Conceito

Sexta-feira, 29 de março de 2024

Colunas

Ódio de janelinha e o “pra dentro, menino”

Sem dificuldade responderíamos “sim” à pergunta se há diferença entre olhar para uma cena e estar na cena. Certo? Certo.

Quando eu era criança, na escola, esperava ansiosamente para desfrutar dos privilégios reservados aos mais velhos. Os dois mais importantes eram o de poder finalmente usar maquiagem e o de aprender a desenhar com perspectiva, nas aulas de arte: aprender a desenhar as coisas de verdade, eu achava. Todo aquele esquema de linhas e ângulos, réguas e compassos me parecia muito adulto, muito sério, muito importante. Os mais velhos aprendiam a perspectiva e eu ficava olhando seus desenhos expostos nos murais, abismada. Eu não percebia que, de fato, não enxergava as coisas convergindo para um mesmo ponto de fuga, as que estão perto, grandes, as de longe, pequenas. A jovem eu aceitava com naturalidade a verdade da perspectiva, mas sabia que devia ser “iniciada”: na minha escola as aulas de arte tem fases bem demarcadas, começamos com o giz de cera, passamos pro lápis, introduzimos a borracha... Se não me falha a memória a perspectiva estava programada para a sétima ou oitava série. É sobre isso que eu queria falar aqui, sobre o contrato da perspectiva e a naturalização dessa forma olhar.



Hans Belting, em um texto sobre a história do olhar, escreveu sobre a forma simbólica da janela, que para ele está no início da revolução inaugurada pela perspectiva. Da Vinci (na segunda metade do século XV) , por exemplo, exortava os artistas a desenhar sobre um vidro os contornos daquilo que se encontrava atrás dele. Dürer (também no finalzinho do século XV), por sua vez, pensava a perspectiva enquanto “visão que atravessa”, o que, para Belting, só faz sentido se pressupomos uma tela através da qual o olhar acontece. É como se os dois artistas estivessem se aproximando do que acontece quando olhamos para fora de uma janela: os objetos vistos aparecem “atrás” da abertura. Leon Battista Alberti, estudioso italiano (do século XV!), sugeriu que era através da abertura escura da pupila que o olhar se voltava para o exterior, como que a partir de uma janela.

Estou tentando justificar minha ingenuidade! Nos primórdios de minha terceira série, quando eu aceitava com naturalidade a realidade da perspectiva, quem poderia me culpar? Atrás da jovem Leíner havia séculos da tradição que Belting chama de “pespectiva naturalis”, legitimando o olhar pela janela como se fosse algo natural, nosso “modo mesmo” de contemplar o mundo.

Aqui vale um “nota bene”. A disposição em aceitar a pintura como uma janela (as molduras, no início, eram pensadas como imitações de moldura de janelas reais!), implica por sua vez uma indicação da posição do espectador: se esse observa a cena por uma abertura, então ela deve ocorrer num espaço externo ao que o espectador se encontra. Belting frisa essa oposição entre interior e exterior como lei fundamental da história da imagem ocidental, “somente alguém que se encontre à janela ou diante de uma porta é capaz de “ver através””, escreveu.

Esse lugar (o interior mágico para observar as coisas), era onde queria entrar quando era criança. Era nele que eu esperava ser inserida quando chegasse na oitava série e “tivesse idade”: o dentro reservado aos mais velhos.

E lá estava eu, esperando. Infelizmente, no final da história eu odiei desenhar em perspectiva: detestei ter que obedecer as linhas convergentes e achava que esse tal de “ponto de fuga” era conversa de observador covarde. Mas não posso negar o charme, o “frisson”. Ainda penso nesse lugar dos perspectivadores, o interior mágico e não deixo de questionar o que significa entrar nele. Aquilo que eu ansiava por fazer (entrar), implicava uma saída, uma retirada do mundo “lá fora”, o mundo detrás do vidro. É uma alienação do mundo, portanto. Como desenhista, acho abandonar o mundo um prejuízo. Me pergunto se não é essa entrada no domínio dos mais velhos que faz tanta gente parar de desenhar quando cresce. Lá dentro parece que tudo deve ser ordenado, lá fora é do jeito que for, do jeito que der.




*"Seja Breve" é a coluna semanal sobre arte de Leíner Hoki, 22 anos, cuiabana. Atualmente cursa belas artes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em Belo Horizonte.


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