Olhar Conceito

Sexta-feira, 29 de março de 2024

Colunas

Camões: mais um velho do restelo para Os Lusíadas

Stéfanie Medeiros

[Antes de começar a coluna de hoje, vou repetir o aviso dado na coluna anterior (e farei isso por mais algumas semanas); a saber: “Acho interessante esclarecer algo que já me parecia claro, mas que talvez ainda não esteja: este texto (ou os anteriores, ou os próximos) não é uma análise propriamente dita – lhe falta profundidade de análise, profundidade essa que nem é meu objetivo desenvolver aqui nem me caberia alcançar num texto de jornal. Este texto é uma conversa com o leitor. Apenas isso. Somos o leitor e eu sentados conversando sobre estes artistas. Aviso feito, vamos à conversa de hoje.]

CANTO IV, 102: “Oh! Maldito o primeiro que, no mundo, / nas ondas vela pôs em seco lenho!”

Avisando o que não é necessário avisar: toda leitura é parcial. Admitindo isso e não vendo nisso problemas, começo minha coluna de hoje.

“Os Lusíadas” de Luís de Camões (1524-1580) é um livro ideologicamente perverso, e isso fica mais evidente nos tempos atuais (ao longo do texto isso ficará mais claro). É, ao mesmo tempo, uma das grandes obras de arte ocidentais, seja na maestria de ritmo e rimas condicionadas pelo controle total da forma, seja na imaginação ali posta, seja na cristalização absoluta de versos que o tempo não pode e não vai esquecer. Essa ambiguidade, essa convivência entre genialidade e ideologia viciada é uma contradição muito recorrente à qual teremos de nos acostumar se quisermos ler o que de melhor já se produziu na arte ocidental.

Faço aqui uma segunda pausa para deixar outra coisa bem clara nesse início de coluna, a saber: não podemos nos esquecer de um ponto tão importante quanto delicado, que é o de tratar-se aqui (como em qualquer outra coluna minha) de uma obra de ficção. Ou seja, cair na simplificação de tratar o livro como um relato verídico e por isso culpabilizar o seu autor como se as opiniões ditas ali fossem as do próprio escritor é um grande amadorismo (já diria Rimbaud: “Eu é um outro”). Ficção não é realidade. Realidade não é ficção. Mas isso não nos impede de problematizar a questão, e é isso o que a coluna de hoje se propõe a fazer: colocar para pensar, fazer refletir.

Não há como não admitir a genialidade de “Os Lusíadas” ao ler versos como os seguintes (mantenho nos poemas aqui reproduzidos a grafia do século XVI!)


CANTO IV, 91:

“(...) ‘Ó doce e amado esposo,

sem quem não quis Amor que viver possa,

porque is aventurar ao mar iroso

essa vida que é minha e não é vossa?”




CANTO III, 129:

“Põe-me onde se use toda a feridade,

entre leões e tigres, e verei

se neles achar posso a piedade

que entre peitos humanos não achei.”



CANTO III, 127:

“Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito

(...)

a estas criancinhas tem respeito,

pois o não tens à morte escura dela;

mova-te a piedade sua e minha,

pois te não move a culpa que não tinha.”

Esses e outros versos de “Os Lusíadas” são ápices da produção literária em língua portuguesa, e não há quem os possa tirar de lá. Ponto.

Isso dito, vamos à questão espinhosa. Só não há ainda um grande debate ou alvoroço (e um muito justo alvoroço) público em torno de “Os Lusíadas” porque ninguém (no Brasil, digo) o lê. Ele é um dos "muito citados e pouco lidos". Porém não há dúvidas em relação à perversidade do assunto de composição do livro. Com o pretexto de cantar e honrar a primeira ida dos portugueses à Índia em busca de especiarias e outras riquezas, são constantemente depreciados no decorrer do livro: os negros, as mulheres, os homossexuais, os indianos, os habitantes dos vários reinos da África, os muçulmanos, os judeus. A lista continua. E os exemplos são vários, dou aqui alguns:



CANTO IV, 48:

“Este é o primeiro Rei que se desterra

da Pátria, por fazer que o Africano

conheça, polas armas, quanto excede

a Lei de Cristo à Lei de Mafamede.”



CANTO III, 92:

“Não era Sancho, não, tão desonesto

como Nero, que um moço recebia

por mulher (...)”



CANTO X, 53:

“Virá despois Meneses, cujo ferro

mais na África, que cá, terá provado;

(...)”



CANTO VII, 12:

“Fazei que torne lá às silvestres covas

dos Cáspios montes e da Cítia fria

a Turca geração, que multiplica

na polícia da vossa Europa rica.”



CANTO X, 66:

“Tendo assi limpa a Índia dos immigos,

Virá despois com ceptro a governá-la,

(...)

Só quis provar os ásperos castigos

Baticalá, que vira já Beadala:

de sangue e corpos mortos ficou cheia

e de fogo e trovões desfeita e feia.”



CANTO X, 47:

“Não será a culpa abominoso incesto,

nem violento estupro em virgem pura,

nem menos adultério desonesto,

mas cua escrava vil, lasciva e escura.”

É escandaloso, e é um escândalo de mais de 500 anos. Há ainda outros mais antigos, nós sabemos, mas (infelizmente) um escândalo não anula o outro e é preciso lidar bem ou mal com eles todos. Creio que a velha desculpa (“Mas os tempos eram outros e o contexto também, temos de entender!”) não cola mais. Ela dá, sim, matéria para reflexões interessantes acerca do livro, mas não exime sua culpa. É um belíssimo livro. Mas é um belíssimo livro culpado.

As mentiras ditas pelos portugueses são tidas como astúcia, as ditas pelos inimigos como simples mentiras e imundície; a cobiça é tratada, do lado dos portugueses, sempre como desejo de glória e fama, do lado dos inimigos como perfídia e baixeza. Nada disso deveria surpreender qualquer leitor com um mínimo de senso crítico e de conhecimento de mundo: o livro tem um objetivo, que é dar glória às invasões portuguesas – e é isso mesmo o que ele faz. Até aí (não deveria haver) nenhuma surpresa. O fato, infelizmente, é que as consequências no mínimo perigosas dessa unilateralidade nem sempre ficam claras para o leitor.

As questões que ficam, então, (e para elas eu infelizmente ainda não tenho respostas) são as de 1) até que ponto essa já anunciada unilateralidade é de fato percebida pelo leitor de “Os Lusíadas” e 2) de que modo essa unilateralidade etnocêntrica, xenófoba, homofóbica, racista, antissemita, machista e islamofóbica pode ser problematizada para que o leitor perceba não só a beleza colossal do livro (e não há como negá-la), mas também perceba os problemas ideológicos ali apresentados e representados.

Ironicamente, no próprio livro há uma passagem (curtíssima, sim, mas que está lá) que basicamente desmente todo o motivo do livro, apaga toda a glória até ali possível aos invasores portugueses na mente do leitor mais desavisado: a passagem do velho do restelo. É de modo geral um raio de lucidez em meio ao Canto IV, e um dos trechos artisticamente mais geniais do livro. Quando as caravanas partem das praias portuguesas, o velho do restelo “meneando três vezes a cabeça” declara o seguinte:



CANTO IV, 95; 96; 97; 101; 102:

“Ó glória de mandar, ó vã cobiça

desta vaidade, a quem chamamos Fama!

Ó fraudulento gosto, que se atiça

cua aura popular, que honra se chama!

(...)

Que mortes, que perigos, que tormentas,

que crueldades neles exprimentas!

(...)

Dura inquietação da alma e da vida,

fonte de desemparos e adultérios!

Sagaz consumidora conhecida

de fazendas, de reinos e de impérios!

(...)

A que novos desastres determinas

de levar estes Reinos e esta gente?

(...)

Buscas o incerto e incógnito perigo

por que a Fama te exalte e te lisonje

chamando-te senhor, com larga cópia,

da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia!

(...)

Oh! Maldito o primeiro que, no mundo,

nas ondas vela pôs em seco lenho!

Digno da eterna pena do Profundo,

se é justa a justa Lei que sigo e tenho!

Nunca juízo algum, alto e profundo,

nem cítara sonora ou vivo engenho,

te dê por isso fama nem memória,

mas contigo se acabe o nome e glória!”



Enfim: “Os Lusíadas” é uma grande obra de arte. É preciso admitir, mesmo com a boca torcida e uma cara de descontentamento. Eu já disse isso algumas vezes em outras colunas, e repito: os gênios nem sempre criam obras generosas e benignas; as obras generosas e benignas nem sempre são criadas por gênios. Isso é injusto, mas a vida não é justa. O grupo dos grandes gênios das artes (um “grupo” que deve sim ser constantemente reconsiderado, revisto, reavaliado através dos séculos em relação àquilo que chamamos de “qualidade” naquele tempo e naquele contexto específicos [algo, portanto, mutável e maleável]) é só isso mesmo: o grupo dos grandes gênios das artes. Não é necessariamente o grupo dos menos preconceituosos, não é o grupo dos mais esclarecidos, não é o grupo dos que com razão culpam a guerra pelos nossos males, não é o grupo dos que são gentis e fazem o bem ao próximo. É só o grupo dos grandes gênios das artes. Ponto. Talvez a construção da imagem de um grande artista crie em nós leitores a expectativa de um ser humano mais elevado, o que não condiz com a realidade. Afinal, ele é ainda um ser humano.

Se precisássemos escolher um amigo ou representante público, escolheríamos sem pensar duas vezes o escritor pior – pior, mas engajado no melhoramento da qualidade de vida de todas e todos. Preferiríamos, no entanto, ler o autor genial.

O escritor genial continuaria sendo genial; e o pior, pior. É injusto, mas (repito) a vida não é justa.

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*A coluna Rubrica, publicada às segundas no Olhar Conceito, é assinada por Matheus Jacob Barreto. Matheus nasceu na cidade de Cuiabá/MT. Foi um dos vencedores das competições nacionais “III Prêmio Literário Canon de Poesia 2010” e “III Prêmio Literário de Poesia Portal Amigos do Livro de 2013”. Teve seus poemas vencedores publicados em antologias dos respectivos prêmios. Em outubro de 2012 participou da Bienal Internacional do Livro de São Paulo. Estuda na Universidade de São Paulo e mora na capital paulista. Escreveu o livro “É” (Editora Scortecci, 2013).

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