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Pietá: asco e sensibilização provocados por conflitos familiares

Autor: Felippy Damian - Especial para o Olhar Conceito

07 Jul 2013 - 13:00

Reprodução

Piedade, é o sentimento que adorna o rosto da Virgem Maria ao ter o cadáver do do filho morto em seu colo, na obra de mármore de Michelangelo, exibida na basílica de São Pedro. É o mesmo sentimento que conduz "Pietá", o último filme do sul-coreano Kim Ki-duk, vencedor do famigerado Festival de Veneza, em 2012.

O longa pode ser compreendido como estruturado sobre três atos. A diferença, em favor da história contada pelo cineasta, é justamento um contraponto ao teórico Syd Field, que propõe a mudança psicológica, e por vezes moral, de seu protagonista no terceiro ato. A conversão de Kang-do (Lee Jung-Jin) ocorre já no segundo ato, porém, a mudança brusca é forte o suficiente para perdurar até o final sem se tornar o personagem enfadonho.



Kang-do, aliás, é um personagem complexo e interessante, um anti-herói, com muito mais de anti do que de herói: um vilão repugnante que ganha a vida cobrando dívidas para um agiota. A inadimplência dos devedores imputa ao sujeito uma peculiaridade em seu ofício, ele impetuosamente quebra braços e pernas afim de que os aleijados ganhem pensões do estado e assim, saldem suas dívidas. Neste momento temos em todos os devedores a constante súplica por piedade, devidamente ignoradas pelo solitário e frio cobrador que, em outros momentos, diz não ter nome e revela não saber, ou não comemorar, o próprio aniversário.

A primeira grande virada se dá com o surgimento repentino de uma mulher, que estranhamente persegue vilão, entrando em sua casa e arrumando-a sem dizer uma palavra sequer. Logo a desconhecida reclama a maternidade de Kang-do, o que provoca a ira do suposto filho, pelo abandono por tanto tempo. Kim apresenta assim dois personagens com complexidades ímpares capazes de sustentar a sua trama com naturalidade.

O que chama a atenção é justamente a mudança de comportamento do protagonista que logo é cativado pela genitora e passa a sorrir, perdoar devedores e ter medo, tudo decorrente do amor de caráter inédito em sua vida. O filme tem cenas fortes no começo que causam asco, mais pelo peso do seu roteiro do que pelas imagens em si, pois o diretor opta por não mostrar explicitamente toda a crueldade de Kang-do, apesar do texto lhe possibilitar tais imagens. Mas a arrebatadora conversão do vilão é extremamente convincente e, mais ainda, comovente. Agora é o cobrador quem implora por piedade, seja para a mãe ou para outros que possam ameaçá-la.



Kim não merece ter sua obra exposta apenas pelo seu roteiro, a sua direção é digna de observação também. Mesmo que sujeita ao roteiro, a direção consegue mostrar apenas o essencial, não subestimando a inteligência do seu público, trabalhando tanto com a ação fora de quadro, quanto com planos detalhes que se colocam como peças importantes à narrativa.

O filme ainda compõe quadros de significados máximos como o que Kang-do se deita ao lado da mãe e do irmão. Esta sequência já no final do longa puxa espontaneamente outra da memória deste colunista, a sequência final de "A Serbian Film-Terror sem limites" (2010) de Srdjan Spasojevic, quando pai, mãe e filho deitam juntos na cama, num plano picado (câmera posicionada de cima pra baixo) semelhante ao de Pietá. Os cineastas de ambos os filmes estão situados em países divididos por muros, e tem no âmbito familiar o mote dos conflitos, mostrando com isso que tais conflitos vão além de culturas e geografias.

A crítica feita ao capitalismo tem proporções interessantes. Os trabalhadores são vítimas e vitimados em seus locais de trabalhos, e ainda por seus instrumentos de trabalho. Clamam por piedade mas pouco fazem contra o seu algoz, tornam-se aleijados, e mais, marginalizados.

"Pietá" é um trabalho importante, do tipo que agrada e agride, pode ser adorado e refutado, mas deve ser visto para tal. Uma obra autoral do cinema sul-coreano que se pauta pela piedade e muito mais pela ausência dela.

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