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Machado de Assis: o milésimo comentário

Matheus Jacob Barreto

[Antes de começar a coluna de hoje, vou repetir o aviso dado na coluna anterior (e farei isso por mais algumas semanas); a saber: “Acho interessante esclarecer algo que já me parecia claro, mas que talvez ainda não esteja: este texto (ou os anteriores, ou os próximos) não é uma análise propriamente dita – lhe falta profundidade de análise, profundidade essa que nem é meu objetivo desenvolver aqui nem me caberia alcançar num texto de jornal. Este texto é uma conversa com o leitor. Apenas isso. Somos o leitor e eu sentados conversando sobre estes artistas. Aviso feito, vamos à conversa de hoje.]

Já começo com um clichê, lá vai: autor de hoje parece não precisar de apresentações – mesmo assim, teimo e o apresento pelo simples prazer de apresentá-lo: Machado de Assis (1839-1908) foi um romancista, contista, cronista, poeta, crítico literário e dramaturgo brasileiro. É um dos pontos altos da literatura universal (ao menos na prosa). Tudo isso é repetir o óbvio.

A coluna de hoje, aliás, tem muitas repetições. Como conversar sobre Machado de Assis sem repetir o que centenas já disseram (e melhor)? Só mesmo escrevendo uma tese propriamente dita, com tempo e disposição inigualáveis para tal. Não é esse o meu caso, nem é esse o caso e espaço de uma coluna de jornal. Tenho poucas linhas, que só servem mesmo para lembrá-lo, senhor leitor, de alguns autores que são significativos e que o senhor deve (ou melhor: deveria) ler ou reler.

Logo, não quero nem consigo dizer novidades neste pequeno espaço. Mea culpa. Isso dito, vamos adiante.

Machado de Assis é um dos (felizmente) vários cumes que temos na montanhosa paisagem da literatura brasileira. Há Drummond, há Bandeira, há Cecília Meireles, há Orides Fontela, há Hilda Hilst, há João Cabral de Melo Neto, há Guimarães Rosa, há Clarice Lispector e há mais uma dúzia de outros que não cumpre enumerar (mais ainda) aqui. Entre eles há Machado de Assis.

O famigerado ‘trio’ (“Memórias Póstumas de Brás Cubas”, “Quincas Borba” e “Dom Casmurro”) é a causa dessa posição privilegiada de Machado de Assis nas letras brasileiras (para ser mais preciso: o trio e alguns livros de contos). O trio e os novos contos representam (repito, repito, repito) um ponto de virada na obra mais tradicional e muito sentimental que Machado de Assis vinha escrevendo até então e com ela fazendo carreira (considero “sentimental” uma característica ruim em matéria de literatura, que fique anotado e notado).

Que livro superou “Dom Casmurro” e “Quincas Borba”? Já adianto: nenhum. É claro que alguns chegaram, para a nossa felicidade, ao mesmo patamar, mas nenhum os superou. Esse “patamar” absoluto (sim, acredito num “patamar absoluto” que de tempos em tempos recebe mais uma ou outra obra genial) tem como contribuições do Brasil “A Rosa do Povo”, “Claro Enigma”, “Romanceiro da Inconfidência”, “Grande Sertão: Veredas”, “Poemas malditos, gozosos e devotos”, “A Paixão Segundo G. H.”, “A luta corporal”, “Rosácea” e muitos, muitos, muitos outros. Outra vez: isso é dizer o já – e melhor – dito (e até o reconhecimento do fato é repetição!).

Tomemos, por exemplo, “Dom Casmurro” e “Quincas Borba”. Não importa nada o que vou dizer agora, mas vá lá: são meus dois livros favoritos do grande Machado. A diferença, no entanto, que sempre vi entre eles e que me volta à mente quando os releio é a seguinte: parece-me que “Dom Casmurro” é superior no enredo, mas que “Quincas Borba” o supera na linguagem ‘misteriosamente cristalina’ (ou ‘cristalinamente misteriosa’). Pode ser só impressão minha. Que seja, então, mas fica aqui registrada.

Ler “Quincas Borba” traz um prazer indescritível e constante, desse que temos frente ao impossível que se realiza, frente ao indescritível que se materializa. O prazer que tenho eu com “Dom Casmurro” é de outra ordem – apesar de passar também pelo (e voltar ao) prazer estético que sua escrita limpa e irônica (repetir, repetir, repetir) inspira. O enredo de Dom Casmurro foi colher suas bases na grande paisagem da literatura universal, mas o transformou em algo pulsante, vivo, complexo e transparente como só a água (de mar, de ressaca) pode ser. Seu enredo é ao mesmo tempo convencional e novo, sua trama é feita da linha da vida, da linha dos temperamentos humanos e maravilhosamente contraditórios de Capitu, de Bentinho, de Escobar, de D. Glória, de Sancha.

Leia-se, por exemplo, aquele curto e imenso capítulo 123 de “Dom Casmurro”.

“CAPÍTULO CXXIII

Enfim, chegou a hora da encomendação e da partida. Sancha quis despedir-se do marido, e o desespero daquele lance consternou a todos. Muitos homens choravam também, as mulheres todas. Só Capitu, amparando a viúva, parecia vencer-se a si mesma. Consolava a outra, queria arrancá-la dali. A confusão era geral. No meio dela, Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas...

As minhas cessaram logo. Fiquei a ver as dela; Capitu enxugou-as depressa, olhando a furto para a gente que estava na sala. Redobrou de carícias para a amiga, e quis levá-la; mas o cadáver parece que a retinha também. Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã.”

Esses dois livros estão obviamente – tanto em enredo quanto em linguagem – acima de muito do que se produziu em língua portuguesa até hoje. Os que não têm certeza disso precisam imediatamente reler ambos. O mundo pode girar, o tempo pode passar e os livros podem todos sumir, mas Machado de Assis fica. Fica e segue. Repito, repito, repito.

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*A coluna Rubrica, publicada às segundas no Olhar Conceito, é assinada por Matheus Jacob Barreto. Matheus nasceu na cidade de Cuiabá/MT. Foi um dos vencedores das competições nacionais “III Prêmio Literário Canon de Poesia 2010” e “III Prêmio Literário de Poesia Portal Amigos do Livro de 2013”. Teve seus poemas vencedores publicados em antologias dos respectivos prêmios. Em outubro de 2012 participou da Bienal Internacional do Livro de São Paulo. Estuda na Universidade de São Paulo e mora na capital paulista. Escreveu o livro “É” (Editora Scortecci, 2013).
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