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José Craveirinha: o poeta, seu sangue e sua terra
Matheus Guménin Barreto
[Antes de começar a coluna de hoje, vou repetir o aviso dado na coluna anterior (e farei isso por mais algumas semanas); a saber: “Acho interessante esclarecer algo que já me parecia claro, mas que talvez ainda não esteja: este texto (ou os anteriores, ou os próximos) não é uma análise propriamente dita – lhe falta profundidade de análise, profundidade essa que não é meu objetivo desenvolver aqui, e que não me caberia alcançar em meia página de jornal. Este texto é uma conversa com o leitor. Apenas isso. Aviso feito, vamos à conversa de hoje.]
José Craveirinha (1922-2003) é um dos autores centrais da literatura de Moçambique – e de toda a língua portuguesa. Esteve à frente de diversos grêmios e associações de escritores moçambicanos e recebeu vários prêmios em Moçambique, Portugal e outros países, sendo talvez o mais significativo deles o Prêmio Camões em 1991.
A conversa de hoje vai ser, como todas as outras, infelizmente muito curta para o tamanho e a importância da obra sobre a qual conversaremos.
A escrita de Craveirinha é expressão de ruptura absoluta: é cheia de “nós” e “eles”, de “irmãos” e “outros”, de “negro” e “branco”, de “grito” e “silêncio”. É a escrita daquele que não pode não escrever – e que, quando escreve, é com força imaginativa, com senso e conhecimento de estética, com uma consciência profunda acerca das possibilidades da língua. Mais do que isso: além da consciência acerca de suas possibilidades, há também a ampliação, à força, dela. À força o poeta insere palavras das línguas nativas, à força ele inverte os elementos da oração, à força ele injeta o sangue, a cor da pele, o trabalho forçado, a paz do dito “homem de bem” conquistada à custa de mulheres e homens africanos. Nada é pacífico no poema de Craveirinha, e mesmo no momento de “fazer as pazes” sobeja a ironia. Não se trata de fazer as pazes de fato (“[...] perdoo-lhes a sua bela civilização à custa do sangue / ouro, marfim, améns / e bíceps do meu povo.” – Poema “África” do livro “Xigubo”).
Em Craveirinha o significado do “Nós” africano se forma (ou reafirma) em contraposição ao “Outro” europeu. Se o “Nós” não é o “Outro”, então o que ele é? Essa questão o eu poético busca responder no decorrer do livro “Xigubo” – palavra que significa “grito de guerra” ou “dança guerreira”. Aliás, o caráter afirmativo é outro ponto significativo do livro. Ele não é um livro calcado em questionamentos sem respostas, mas sim em questionamentos que recebem cada um a sua resposta, seja no próprio verso, seja nas entrelinhas dele. É necessário separar o “Outro” do “Nós” para que só aí o “Nós” do poema se forme e se fortaleça enfim. O “Nós” africano é o que o “Outro” ainda não conseguiu apagar à força.
“Xigubo” é um livro que age.
É marcante no livro “Xigubo” a denúncia social explícita, a ânsia de dar voz àqueles que perderam a sua devido à opressão racial do sistema colonial português. O trabalhador braçal e analfabeto (que, portanto, nunca terá acesso ao livro, já que ele foi escrito em português num país onde o índice de analfabetismo era altíssimo e onde o povo em sua maioria falava as línguas de sua terra, não a portuguesa) povoa o livro de Craveirinha como um “irmão” na defesa do qual o poeta deve agir, em nome do qual o poeta deve criar e do qual o poeta “empresta” forças para seguir em frente.
"GRITO NEGRO
Eu sou carvão!
E tu arrancas-me brutalmente do chão
e fazes-me tua mina
patrão!
Eu sou carvão!
E tu acendes-me, patrão,
para te servir eternamente como força motriz
mas eternamente não
patrão!
Eu sou carvão!
E tenho que arder, sim
queimar tudo com a força da minha combustão.
Eu sou carvão!
Tenho que arder na exploração
arder até às cinzas da maldição
arder vivo como alcatrão, meu irmão
até não ser mais a tua mina
patrão!
Eu sou carvão.
Tenho que arder
queimar tudo com o fogo da minha combustão.
Sim!
Eu sou o teu carvão
patrão."
(Do livro "Xigubo")
Não pode haver harmonia e conciliação numa terra sitiada – e é nisso que, aos olhos do eu lírico, a terra de Moçambique foi transformada no decorrer dos séculos. Assim, “Xigubo” (o “grito de guerra” publicado em 1964, 11 anos antes da Independência de Moçambique) propôs a expulsão do invasor. Afinal, manter a paz não parecia ser opção para quem já não a tinha.
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*A coluna Rubrica, publicada às segundas no Olhar Conceito, é assinada por Matheus Guménin Barreto. Matheus Guménin Barreto estuda literatura alemã na USP, escreve sobre literatura para jornais do estado de Mato Grosso, é tradutor e escreveu um livro ainda inédito de poemas, que sairá entre 2016 e 2017.