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Sexta-feira, 29 de março de 2024

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Guerra do Paraguai foi essencial para ‘solidificar’ a gastronomia cuiabana: conheça a história de iguarias locais

Foto: Rogério Florentino Pereira/Olhar Direto

Guerra do Paraguai foi essencial para ‘solidificar’ a gastronomia cuiabana: conheça a história de iguarias locais
Maria Izabel, mojica de pintado, ventrecha de pacu, farofa de banana, pixé, furrundu. Só de ler estes nomes, tenho certeza que a boca do leitor já se encheu d’água. Mas você conhece a história por trás da tão amada gastronomia cuiabana?



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Não se culpe se você não conhece. Mesmo quem estuda a área ainda tem dificuldades de encontrar as histórias ‘reais’. Segundo o professor de gastronomia João Carlos Caldeira, 45, ainda hoje é rara a bibliografia sobre o tema, e o que se sabe vem de lendas e de pesquisas recentes, feitas pelos próprios alunos e professores da área.

“A gente leva em conta que a própria ciência gastronômica é muitíssimo recente... aqui no estado tem 12 anos, se contar o Senac, que foi o pioneiro, Unic e agora Univag e a Facipe em Sinop. Mas é muito novo ainda, então existe muito pouco. Mas, graças a esses cursos de gastronomia que começou a se estudar, desenvolver trabalhos e levantar um pouco mais essa história”, comenta o professor.

João Carlos Caldeira (Foto: Rogério Florentino / Olhar Direto)

No princípio, a culinária cuiabana teve as mesmas influências da culinária brasileira em geral: espanhola, portuguesa, africana, um pouco da árabe e indígena. Mas os pratos que são tipicamente da capital foram influenciados principalmente pela chamada ‘Guerra do Paraguai’.

“Entre 1864 e 1870, Brasil, Argentina e Uruguai se uniram contra o Paraguai, na famosa guerra do Paraguai, que durou aproximadamente seis, sete anos”, lembra o professor. “A gente dependia basicamente do rio e das navegações, e durante esses seis anos ficaram 100% proibidas as navegações nos rios Cuiabá, Paraná e Paraguai, e aí a gente ficou, literalmente, isolado”.

Deste isolamento, veio a necessidade de se aproveitar somente o que se tinha na terra, já que nada de fora conseguia chegar. “E o que a gente tinha em abundância era carne de gado - porque a gente já tinha a criação do gado pantaneiro - o arroz irrigado, ‘alagado’, principalmente das margens dos rios, a banana e a mandioca. E com base nesses quatro ingredientes: carne, mandioca, arroz e a banana, surgiram os pratos tipicamente nossos”, explica João.

Foi aí que se fortaleceu, por exemplo, o hábito de comer a ‘Maria Izabel’, que nada mais é do que arroz com carne. Apesar de ser influenciado pela tradição gaúcha do ‘arroz carreteiro’, a receita é diferente. João explica: “O arroz carreteiro usa o charque, que é um tipo de carne seca. A nossa Maria Izabel usa a carne serenada, que é seca à noite, e não só no sol, e a umidade muda um pouquinho o sabor da carne. No sul do país corta-se a carne em pedaços um pouco maiores e até em lascas, aqui a gente corta em cubos, em pedaços menores. E no tempero a gente utiliza o coentro, e eles não”.

Além destes quatro ingredientes icônicos, é claro, existe o peixe, que já era utilizado mesmo antes da guerra. Da mandioca, faz-se a paçoca de pilão, a farofa, a mojica de pintado, dentre tantas outras receitas. Da banana, além da famosa farofa, veio a carne ensopada com banana verde, e muito mais. O arroz da Maria Izabel está também no bolinho – que é socado no mesmo pilão da paçoca – e por aí vai.

Pacu assado (Foto: Rogério Florentino / Olhar Direto)

Histórias

Apesar de a gastronomia cuiabana ter uma história geral, cada uma das iguarias é rodeada de ‘lendas’. Lendas estas que são ainda mais difíceis de serem comprovadas cientificamente, mas que foram passadas de geração para geração e fazem parte da cultura da capital.

Uma dessas histórias é a do famoso escaldado do Choppão – restaurante mais antigo de Mato Grosso - contada inclusive pelo proprietário, Fernando Quaresma. “O Choppão era uma região totalmente fora do centro da cidade, como se fosse Livramento pra nós hoje”, conta João. “E ali era uma região de prostituição, há 100, 150 anos, onde os tropeiros chegavam e se instalavam na sombra das árvores pra alimentar os cavalos, muito antes da cidade. Uma cafetina que cuidava das meninas criou essa receita do escaldado, justamente pra fortalecer, dar mais vigor físico para o trabalho delas do dia a dia”.

Foto: Reprodução

Essa receita, então, teria sido ensinada por essa senhora para o primeiro dono do Choppão, que na época era um ‘boteco’. Ele começou a servir o escaldado, que é famoso até hoje, principalmente nos dias frios.

“Essa receita também existe em outras regiões do país, mas não como é feita aqui. Aqui, por exemplo, a gente usa farinha de mandioca. Em quase nenhuma região do Brasil se usa a farinha de mandioca no escaldado, o ovo não é inteiro... então é por causa dessas variações que a gente pode falar que a receita é nossa”, comenta o professor. “A gente tem que tomar cuidado, na gastronomia, de falar: esse produto é exclusivamente nosso. Porque praticamente não existe receita exclusiva”, afirma.

Fugindo da ideia errônea de rotular os pratos como somente cuiabanos, mas lembrando de iguarias que fazem parte de nossa cultura gastronômica, João cita alguns outros: carne ensopada com banana verde, pixé (milho socado, torrado, com canela), furrudu (doce feito do pau do mamoeiro e adoçado com rapadura de cana), boipá (doce de abóbora feito com casca e adoçado com rapadura de cana), doce de caju (feito com o caju inteiro) e o bolinho de arroz (que, segundo Dona Eulália, surgiu próximo a 1870, como uma forma de reaproveitar o excedente de arroz).

Bolo de arroz da Dona Eulália (Foto: Rogério Florentino / Olhar Direto)

“A mojica é clássica, icônica. É lógico que é muito parecida, prima-irmã da moqueca, mas ela é nossa, feita com um peixe nosso, de água doce, com a mandioca cortada num tamanho que não é comum na moqueca, então a gente tem diferenciações. A gente pode dizer que a mojica é nossa”, garante o professor. “E a ventrecha do pacu... até o nome ‘ventrecha’ praticamente só é usado aqui. Ela é a costelinha do pacu ou do tambaqui”.

Outra exclusividade da gastronomia cuiabana são as próprias peixarias. “Em outros lugares, se você fala ‘peixaria’, é o local onde se vende peixe fresco, como um açougue. Aqui não, aqui peixaria é um restaurante típico de peixe. E esse ‘mini rodízio’, com o filé do peixe frito, a mojica, a ventrecha, isso é muito nosso, extremamente nosso”, comemora.
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