Há uma constante em "O estranho caso de Angélica", filme de Manoel de Oliveira, coproduzido pela Mostra de Cinema de São Paulo, que estreou em Cannes em 2010. A tensão, ao longo dos 90 minutos, é entre tradição e modernidade.
Logo na primeira cena, poderia se tomar o longa como situado num passado remoto, começo do século passado, por exemplo, mas, como se vê depois, a história se passa nos dias atuais. É nesse embate entre o novo e o velho que Manoel cria a trama.
O ponto de partida ocorre quando Isaac (Ricardo Trêpa, neto do cineasta) é chamado às pressas no meio de uma noite chuvosa para tirar uma foto. A modelo, descobre-se logo depois, é Angélica (Pilar López de Ayla). Ao chegar, ele a encontra deitada num divã e morta. A família quer esse último registro da bela rapariga.
Isaac se encanta com a moça e, tradicionalista como é, ele mesmo releva suas fotos no seu quarto de pensão e fica surpreendido ao ver a expressão de Angélica mudar na foto. É nesse momento que parece se apaixonar por ela. Receber a visita de seu fantasma não o assusta, mas, sim, lhe dá a chance de concretizar esse amor além da morte.
O fotógrafo é um intelectual atormentado, tem um ar Dostoievskiano. Entre outros trabalhos, quer capturar em imagens a vida dos cavadores -- que, enquanto roçam a terra entoam uma cantiga tradicional. Ao mesmo tempo, um grupo de engenheiros, entre eles a atriz brasileira Ana Maria Magalhães, pode levar a modernidade para a região que parece perdida no tempo em seu tradicionalismo.
O caso de amor criado por Manoel tem muito a ver com os fantasmas de Henry James, com seu realismo psicológico. E, a certa altura, o que domina o filme é o embate entre o materialismo e o misticismo, materializado no romance de Angélica e Isaac. Do alto de sua centena de anos, mais uma vez, Manoel fez um filme de um frescor juvenil, permeado pela experiência de uma vida.