A primeira vez que a enfermeira Micheline Lopes de Albuquerque, de 49 anos, fez bolo de rolo foi com a avó, na casa da família, em Recife (PE), quando ela ainda era adolescente. Apesar do doce pernambucano sempre ter feito parte da vida de Micheline, ela não tinha costume de preparar a receita. Anos depois, já morando em Cuiabá com o marido e as duas filhas, ela transformou o bolo de rolo em fonte de renda com a Donna Mil Delícias.
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Além do recheio tradicional do bolo de rolo feito com goiabada, que é tombado como patrimônio cultural e imaterial de Pernambuco, o doce ganhou novos sabores. Nutella, prestígio, brigadeiro, maracujá, Oreo e doce de leite são alguns que fazem parte do cardápio da nordestina e também são comuns em Recife, como explica Micheline.
Versátil, o bolo de rolo ainda pode se transformar na estrela de festas de 15 anos ou casamentos, como o feito pela nordestina para o casamento da filha mais velha. A Donna Mil Delícias foi criada em 2021, quando a enfermeira começou a pensar em formas de melhorar a situação financeira da casa, que foi afetada pelas consequências econômicas da pandemia da covid-19.
“Comecei a correr para vender. De uma forma muito rápida cheguei em um supermercado lá do bairro, porque precisava de uma produção grande para ajudar financeiramente. Quando eles viram o produto, que já tinha embalagem, tudo bonitinho, eles disseram que queriam”.
Micheline conta que os bolos de rolo são produzidos com afeto e memórias, como a lembrança da vez em que fez o doce com a avó materna. A nordestina ainda se recorda que ela executou a receita da maneira mais tradicional possível, assando a massa finíssima no fundo de uma forma retangular e enrolando cada camada em um pano de copa coberto com açúcar refinado. Para ela, o momento com a avó, mesmo décadas depois, ainda soa como “uma uma festa”.
“Foi totalmente diferente, um trabalho artesanal e comemos um bolo delicioso. Só lembro dela fazendo essa única vez. Mas o bolo de rolo estava sempre na nossa casa, porque vende em toda esquina, todo mercado e padaria. No café da manhã, no lanche da tarde, no almoço ou na janta, sempre tem bolo de rolo”.
Mudança de Recife e acolhimento em Cuiabá
Antes de criar a Donna Mil Delícias, Micheline atuava em sua área de formação, a Enfermagem. Antes de se mudar para Cuiabá com o marido e a filha mais velha, ela estava trabalhando no Pará com a implantação de equipes de saúde da família. Já o marido trabalhava em Sergipe como engenheiro elétrico em uma obra. Ela conta que os dois já estavam acostumados em lidar com a distância.
“Passei em outro concurso para trabalhar no Hospital Sarah Kubitschek, em Brasília, e ele recebeu uma proposta para vir para Mato Grosso como representante de vendas da empresa que ele trabalha. Foi tudo muito junto. Então a gente teve que tomar essa decisão. O bom para nós é que qualquer decisão que fossemos tomar, a gente ficaria junto, porque eu sempre estava em um canto e ele em outro”.
A decisão do casal foi pela mudança para Cuiabá, onde Micheline também viu uma oportunidade de exercer a enfermagem. Assim que chegou na nova cidade, ela lembra de ter buscado por mercados ou padarias que vendessem o bolo de rolo pernambucano, já que a família estava acostumada a ter o doce presente no dia a dia.
“A culinária de Recife ficou lá e eu senti muita falta. Bolo de rolo faz parte da mesa do recifense, quando cheguei aqui em Cuiabá não tinha. No mesmo mês que chegamos, em agosto, fui atrás de saber onde tinha bolo de rolo para vender. Foi quando descobri que existia o supermercado Big Lar, famoso, porque todo mundo dizia que se tivesse, seria lá. Fui lá e tinha, vinha de Recife mesmo”.
Além de ter encontrado um pouco de sua cultura e novas oportunidades profissionais em Cuiabá, Micheline explica que também encontrou o acolhimento e o calor humano que estava habituada a encontrar em Recife.
Bolos de rolo também podem ser transformados em versões maiores para festas de aniversário ou eventos comemorativos. (Foto: Reprodução)
“Foi uma mudança ótima, não me arrependo da minha decisão, até porque eu amo essa cidade. Ela é muito parecida com o acolhimento que temos no Nordeste. Em nenhum lugar há essa semelhança com o Nordeste, das pessoas serem tão acolhedoras. A gente conversa que parece que conhece a pessoa. Esse clima caloroso a gente gosta muito, estamos acostumados e isso faz falta”.
Durante quatro dos 20 anos em Cuiabá, Micheline enfrentou as dores fortes da espondilite anquilosante, artrite inflamatória que afeta a coluna vertebral e as articulações grandes. Dos médicos, ela chegou a ouvir que precisaria de cadeira de rodas, já que estava perdendo a força para conseguir fazer atividades simples, como caminhar.
“Em 2010 a doença veio com muita força, cheguei ao desespero, porque nenhum remédio parava as dores, já havia reduzido uma parte da demanda da Enfermagem. Tive um encontro com Deus em um momento de muito sofrimento e angústia. Decidi erguer a cabeça e seguir com fé. Fui tentar viver de uma forma mais leve, com muita fé e esperança”.
Em setembro de 2011, Micheline se surpreendeu ao refazer os exames e descobriu que a doença tinha regredido a ponto dela ser considerada como curada. Para a nordestina, o episódio pode ser considerado como um milagre. “Minha coluna estava perfeita como está até hoje. Foi muito bom viver isso, é prova palpável da fé, como explicar isso? Foram quatro anos nesse perrengue. Meus exames estavam todos normais”.
Bolos como forma de sustento
Durante o período de tratamento, em que chegou a precisar de quimioterápicos, Micheline reduziu a demanda de trabalhos na Enfermagem, atuando apenas como voluntária em teleatendimentos durante a pandemia da covid-19. No entanto, os impactos econômicos causados pelo vírus que se espalhou rapidamente pelo mundo, fizeram com que ela começasse a fazer bolos para vender.
“Em dezembro de 2020, nosso dinheiro iria acabar. Foi quando eu decidi que precisaria fazer alguma coisa, porque em janeiro já não teríamos mais como sobreviver. Decidi fazer bolos comuns, principalmente natalinos. Tudo com uma inspiração que tive em sonho. Fui dormir, acordei com o nome da empresa e a logo. A empresa surgiu dessa forma”.
Bolo de rolo também é transformado em bem-casado por Micheline. (Foto: Reprodução)
Mesmo ainda não sendo uma boleira profissional, Micheline começou a fazer as receitas para conseguir ajudar na renda da família. Um dos desafios que ela precisou enfrentar diante do cenário de pouco dinheiro foi o gás de cozinha.
“Como a gente não tinha muitos recursos para comprar gás, eu fazia algo desafiador para quem faz bolo: tinha que preparar várias formas para colocar todas de uma vez no forno. Quando falo para quem é boleiro, eles não acreditam, porque quando coloca o fermento, você deve já colocar no forno. Eu fazia debaixo de oração para o gás aguentar”.
Decidida a aumentar a demanda da Donna Mil Delícias, Micheline foi em um mercado do bairro Santo Amália, onde ela mora, para oferecer os bolos de rolo. A nordestina lembra que, em seguida, resolveu procurar a equipe de compras do Supermercado Big Lar para apresentar seus doces.
Jamais imaginaria que um dia eu iria trabalhar com bolo de rolo. Nesse meio tempo, o Big Lar já não vendia mais bolo de rolo. Todo mundo já sabia que quando eu voltasse de Recife ia trazer vários na mala.
“Quando senti que dava conta de aumentar a produção, decidi ir ao Big Lar na cara e na coragem. Fui conversar com o gerente de compras, contei a história de quando cheguei e fui procurar bolo de rolo lá. Na cara e na coragem. Ele disse que apresentaria o produto para o pessoal e que provariam”.
Atualmente, os bolos de rolo podem ser encomendados na Donna Mil Delícias e também estão à venda nas unidades do Big Lar, em Cuiabá. Para o futuro, Micheline já sonha em transformar o negócio em um café para poder receber o público.
“É algo que faz parte da minha história e da minha terra, isso tem um peso muito grande. É gratificante ver minha cultura sendo valorizada aqui. Vejo meu bolo ganhando espaço e conquistando o paladar das pessoas aqui nessa cidade que é tão acolhedora”.