Com um gosto amargo na boca e em tom de desabafo e lamento, o calejado cineasta mato-grossense Amaury Tangará dispara: é impossível fazer cinema hoje em Mato Grosso. A franqueza de Tangará, exposta durante entrevista para a reportagem do Olhar Conceito na bucólica Chapada dos Guimarães (terra que ele escolheu para morar, apesar de ser hoje uma espécie de caixeiro viajante do cinema), pode assustar, mas é reveladora da angústia de quem ainda sonha em fazer cinema de arte nestas plagas pantaneiras.
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E o que pode parecer uma placitute não é, pois Tangará fala com a experiência de quem já sofreu para produzir vários filmes em solo mato-grossense e corre o mundo para defender com garra a sétima arte.
E a angústia de Tangará é mais do que pertinente. Hoje completa exatos três anos que seu projeto para produção do filme "Cão de Louça" foi apresentado na Agência Nacional de Cinema (Ancine) e ainda aguarda patrocínio de R$ 2,85 milhões, que pode ser captado pelas leis de incentivo federal (Audiovisual), estadual (Hermes de Abreu) e municipais, para realizar o projeto.
Cineasta, teatrólogo, roteirista e ator, Amaury Tangará é autor de inúmeros curtas, dentre os quais se pode destacar Pobre É Quem Não Tem Jipe, A Velha, os Meninos e o Gato Que Escaparam da Estranha Caixa Azul e Horizontem e dos longas Ao Sul de Setembro e A Oitava Cor do Arco Íris. Todas as produções foram feitas com a rara dedicação de quem ainda pensa o cinema como um agente transformador, como educativo, revolucionário.
Em tom onírico e ao mesmo tempo realista, Amaury Tangará avalia que "Cão de Louça" tem tudo para ser uma produção premiadíssima. Com argumento de Luis Carlos Ribeiro, narra a estória de quatro irmãs que optam pela reclusão após a vergonha pública da prisão do irmão, flagrado com a mão na massa ao desviar dinheiro público.
Na justificativa do projeto, Amaury Tangará argumenta que Cão de Louça tem natureza estética e cultural capaz de atingir público adulto de diversos países, pelo fato de apresentar uma história cuja temática é universal. E também avalia ser um filme de grande apelo de público, "pela força dos personagens e pela intrigante e verdadeira história que apóia esta ficção"
Em 1987, ele já defendia Cão de Louça como um projeto cinematográfico de grandeza singular por ser uma ficção engendrada dentro de um fato da vida real,ocorrido em Mato Grosso, que passou 'despercebido' do restante do país.
"Não era tempo, certamente para um projeto de tamanha envergadura e importância dramatúrgica, mas mais do que pensar que não estávamos nós preparados para embarcar de cara nesta grande aventura, pensamos que o país estava ainda carente de preparo para iniciar o financiamento e a revalorização propícios ao seu cinema", afirmou o cineasta no final dos anos 80.
"Vinte e dois anos se passaram e agora, com a maioridade adquirida, novamente retomamos ao projeto deste filme. Depois de dois longa metragens, já podemos agora exibir experiência para nos credenciar a este grande vôo. A eloqüência de seus diálogos, o engenho criativo de sua trama, a força de seus personagens e a emoção da história, que sabemos verídica, faz desse texto um desafio que pretendemos se transforme num ícone do cinema autoral", consta da justificativa de Tangará.
Cão de Louça, em síntese, narra a história de quatro mulheres de uma tradicional família interiorana, que, por vergonha, se isolam por cinquenta anos e passam a praticar entre si um jogo de poder e liberdade comparável ao vivido pelo país nestas últimas cinco décadas. A intrínseca relação entre os fatos, que se passam no pequeno universo da casa onde vivem, com os acontecimentos do Brasil, demonstram ambos o difícil e árduo caminho a ser percorrido até a democracia.
"O resgate deste 50 anos de história, mesclado na história destas quatro mulheres, alinhava mais um pedaço neste mosaico da história nacional que merece registro...Nós e o país, o país e nós, crescemos. Hoje o Brasil busca ser o “país de todos”, mais justo, valorizando mais a diversidade, a descentralização de recursos, a pluralidade de seus próprios “brasis”. Hoje a cultura é prioridade governamental e nós, a caminho deste terceiro longa metragem, buscamos reafirmar uma cinematografia própria, uma linguagem que dê personalidade à nossa cara de brasileiros geodésicos, vivendo a esperança de poder por no mapa e nas telas de cinema do mundo a nossa linguagem como agentes de formação do Brasil", salienta o cineasta em defesa da produção.
Além do filme em si, Cão de Louça tem a singularidade de pretender ser um projeto que reside na preocupação de investir parte do valor da produção na formação de pelo menos 15 jovens, de diversos municípios do estado, que demonstrarem aptidão e/ou intenção de escolher o audiovisual como profissão.