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Desabafo de um repórter fotográfico: a imagem como retrato da realidade

09 Jan 2014 - 10:49

Especial para o Olhar Conceito - Lucas Ninno

Foto: Nick Ut

Desabafo de um repórter fotográfico: a imagem como retrato da realidade
Eu nem ia escrever nada sobre o dia da fotografia. Dia disso, dia daquilo, nunca fui muito ligado nos dias. Aliás, que dia é hoje?

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Acontece que veio ao meu pensamento, de alguma maneira, uma grande foto. Nick Ut, um fotógrafo vietnamita, capturou esta cena muito conhecida, que nos choca até hoje.

A menina, nua, corre enquanto seu corpo queima com Napalm, a famosa bomba incendiária muito usada naquela guerra. Uma maravilha tecnológica da indústria bélica da época. Outras crianças também choram, desesperadas. Ao fundo, a fumaça negra da destruição. Violência, tristeza e revolta. É o que eu sinto. Provavelmente era o que Nick sentia também. E essa é a chave do que vou dizer aqui.

Não foram poucas às vezes em que eu, fotojornalista, fui xingado no exercício da minha profissão, por algumas pessoas que ignoram totalmente nosso dia-a-dia, nossas origens, nossa personalidade. "Abutre", "imprensa vendida", "imprensa burguesa", "vocês só correm atrás de desgraça". É verdade. Quer maior desgraça que uma criança, inocente, nua, com o corpo queimado por uma briga que não é sua, uma guerra que ela nunca irá entender? Quer maior desgraça que o desespero no rosto do garoto que caminha ao seu lado? Quer maior desgraça que a infância, nossa maior saudade, perdida em meio à violência? Nosso mundo é bom, amigos, mas acontece muita, muita desgraça. E a desgraça precisa da gente, como precisou de Nick Ut.

Porquê Nick estava lá? Porque essa era a sua guerra, o seu país. Ut sabia que possuía uma arma. Uma caixa de luz. Com o tiro certo, uma boa equipe e um punhado de sorte, poderia cortar um fio que seja, na cabeleira que é a história. E o fez. Nick, o abutre, o imprensa vendida, o imprensa burguesa, trabalhava para a Associated Press, agência estadunidense. Nick trabalhava para o mesmo país que atacava o seu, que ajudava a queimar suas crianças. Vendido! Porquê? Olhe a foto, você vai entender.

Foram claros, aos olhos de Ut, a revolta. E assim foram claros aos meus. Aos seus. Aos nossos. Dizer: "uma garota correu pelas ruas com seu corpo queimando" não é o mesmo de olhar esta imagem. Ut nunca poderia me ligar, ou escrever e dizer: "cara, isso foi horrível". Mas poderia fazer a foto.

Você, agora, amigo...ainda acha que estamos nessa por grana ou por fama? Ou simplesmente por mostrar violência gratuita? A fotografia é maior que a gente e sabemos disso. O fotógrafo soberbo entra em um erro óbvio e imbecil. Esquece que a história, pela qual trabalhamos e corremos os riscos naturais da vida, passa na frente das lentes e não atrás. Passa aí, nesse mundo, cheio de bondade, ingenuidade, amizade e amor. Mas também repleto de mazelas, problemas, conflitos e desgraças. Cheio de vida e morte, essa eterna briga entre dois pólos, entre realidades antagônicas, entre vacilar ou atacar, clicar e não clicar.

Ut soube o que fazer.

Ele clicou.


*Lucas Ninno é repórter fotográfico pela United Press International (UPI) e reside atualmente no Chile.
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