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15 anos sem liu

Movimento encampa defesa por homenagem à Liu Arruda e presidente da Academia de Letras relembra artista

27 Fev 2014 - 09:47

Especial para o Olhar Conceito - Eduardo Mahon

Foto: Reprodução

Personagem Comadre Nhara, que fuxicava na janela a vida dos cuiabanos, é uma das mais famosas criações de Liu Arruda

Personagem Comadre Nhara, que fuxicava na janela a vida dos cuiabanos, é uma das mais famosas criações de Liu Arruda

Em uma campanha que defende a renomeação da Rua 24 de Outubro para Avenida Liu Arruda em Cuiabá, o presidente da Academia Mato-grossense de Letras, o advogado Eduardo Mahon, discorreu sobre a representatividade do ator em Mato Grosso, que ia além da comédia e destilava ironia e acidez em críticas profundas sobre a sociedade cuiabana. Um homem à frente do seu tempo que deixou para trás apenas lembranças dos personagens incorporados por ele, que ganhavam vida e significação em uma cidade provinciana. 

Leia também: Liu Arruda permanece vivo na memória do povo cuiabano; comediante, ator, diretor, jornalista e professor

Confira na íntegra, o artigo produzido por Eduardo Mahon

Estamos há 15 anos sem o maior ator do teatro mato-grossense. Esse silêncio tortura com saudade o povo cuiabano. Num único homem convergiram duas realidades: a cuiabania tradicional revivida e reinventada, buliçosa com o impacto das transformações que a capital enfrentava na segunda metade do século passado. Encarnava nas apresentações, a um só tempo, crítica à tradicional sociedade provinciana e a perda da identidade regional pela pressão externa que ridicularizava, menosprezava, excluía. Por isso, Liu foi tão grande: ele era um espelho que refletia e refratava, demolia e construía, acalentava e incomodava, conformava e desestabilizava. A proposta do resgate do falar cuiabano era um misto de autocrítica e denúncia, defesa e ataque, uma esfinge para quem não conhecia as nuances da irreverência cuiabana.

Não se enganem as gerações mais novas que hoje recuperam alguns momentos de Liu Arruda por meio de vídeos postados na internet. Ele não era apenas um humorista e a proposta de trabalho não se limitava ao entretenimento, como bem disse o artista plástico Jonas Barros num documentário recém-produzido sobre Ivens Scaff. O humor era apenas um veículo para potencializar a denúncia. Denúncia da descaracterização cuiabana, da timidez que assombrou o regionalismo no entrechoque com outras culturas; denúncia da juventude sem conteúdo, permeável às modernidades superficiais, denúncia política contra o descaso com a coisa pública, com os desvios de comportamento, com a corrupção. No fundo, Liu era ácido, cáustico, amargo. Não se poupava para não poupar o entorno que era atentamente observado pela sátira da Comadre Nhara.

Os trechos gravados e disponibilizados na internet não dão conta de mostrar o que Liu Arruda propunha. Era no show que ele se revelava por inteiro. Nos teatros e botecos, soltava o verbo até sopitar. No improviso, era demolidor, porque não se pautava no roteiro e expunha o que de mais autêntico havia e ainda há na cuiabania. Não por outra razão é que os políticos o temiam pela ridicularização feroz com verdades inconvenientes. Tive oportunidade de enrubescer de vergonha por um político que se sentou para assistir Liu e foi obrigado a sair discretamente. Ao final do espetáculo, fiquei me perguntando como o ator poderia continuar vivendo na cidade, considerando o ‘carão’ pelo qual fez o político passar. Descobri, então, o grau de tolerância endógena, mais uma característica da terra.

O inverso era igualmente bonito. Havia o romantismo como outra possibilidade neste multifacetado artista. Invocando a tradição, plasmada no linguajar e na autenticidade de Compadre Juca, os casos narrados eram resultados de pesquisa, atenção máxima no quotidiano de um tempo que já havia passado ou estava passando. Olhava para trás com saudade, observava o presente com pessimismo e projetava o futuro com ceticismo, característica típica de um ser romântico. Liu não queria que o elã cuiabano passasse. Tentou – e conseguiu – que as novas gerações adotassem todo um conjunto de valores que estava morrendo. Juntamente com Ivan Belém, refez a história, contada com amor e irreverência.

Ele não imitava, criava. Ele não copiava, propunha o novo. Aí está a diferença entre Liu Arruda e caricaturas que vieram em seguida. Portanto, não estamos falando apenas de um bom comediante e sim de um grande intérprete. A tradução da cuiabania sob o olhar dele compartilhava o inconsciente coletivo, tornando-o revelado, registrado, concreto. Ele desnudou a mentalidade de uma cidade do interior, acostumada a acolher o estrangeiro, avalia-lo, incorporar o novo elemento ou rejeita-lo. Esse fuxico, burburinho, diz-que-diz foi gritado nos palcos, revelando o que se pensava do lado de dentro dos casarões, as forças contrárias que atuavam durante o fluxo migratório: a xenofobia e a miscigenação.

Liu vive. Liu vive na memória, vive no coração, vive na história, vive no gracejo, vive no sotaque, vive na chita, vive nas madrugadas cuiabanas. O verdadeiro legado de um homem não são as obras, as intervenções estéticas e passageiras no traçado urbano, as grandiloquências políticas sem consistência. O que é vão o tempo apaga. A herança que se eterniza inspirando gerações é o talento. Liu Arruda, que falta você nos faz... Fico pensando o que diria o Compadre Juca sobre esse ‘novo’ Mato Grosso e chego a rir do deboche que Comadre Nhara faria sobre a nossa Cuiabá atual. Espia aí, Liu! Acode aqui!


*Eduardo Mahon é advogado e presidente da Academia Mato-Grossense de Letras.

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