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Quinta-feira, 02 de maio de 2024

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Rara na MPB, personagem da ‘inimiga’ se torna figurinha fácil na nova música popular

RIO — Pre-pa-ra.

Late mais alto que daqui eu não te escuto. Fala mal de mim, mas é minha fã encubada. No meu lugar não vai ficar. Mandada. Invejosa. Falsificada. Recalcada.

As alfinetadas acima foram pinçadas de canções recentes da música mais popular brasileira — inclusive “Quem é”, do novo álbum de Kelly Key, “No controle” (leia crítica abaixo). Os versos cantados por Anitta, Valesca Popozuda e Ludmilla, além de Kelly (e outras menos conhecidas do grande público) referem-se à personagem que ocupa um lugar crescente no imaginário feminino da canção brasileira: a outra mulher que quer seu brilho, seu homem, seus holofotes, seu camarote. A inimiga, enfim.

Ludmilla resume a popularidade da personagem com o discurso direto que caracteriza suas letras:

— Porque hoje em dia, sei lá, parece que está saindo recalcada do bueiro. Você posta uma foto, ela vem e diz “odeio essa garota”. Para que segue, então?

A lógica das redes sociais não aparece por acaso na fala de Ludmilla. Anitta acredita que é exatamente graças a Facebook, Twitter, Instagram e similares que a figura da invejosa começou a se definir com mais clareza, entrar na roda viva da língua da rua e cair na canção popular.

— Certamente tem a ver com o crescimento da internet e do mundo fake que é construído ali. Você não mostra foto sua chorando, dizendo que está muito triste, não tira foto da sua parte do corpo mais gorda. Quem está vendo encontra a realidade do outro muito melhor do que realmente é. E aí começa a invejar, vê que a vida dos outros é muito melhor do que a sua, que está há três horas na rede social, sem fazer nada, com celulite. E como na internet as pessoas não têm rosto, elas descarregam essa inveja ali.

Praticamente fundadora da tendência, com sua “Show das poderosas”, Anitta explica que o tema surgiu para ela a partir da experiência própria (o mesmo que relatam as outras entrevistadas):

— Sempre falava de homens nas minhas músicas, a atitude feminina com relação a eles. Queria fazer uma música sobre mulheres. Primeiro pensei em algo sobre beleza, dança. Mas aconteceu comigo essa situação da música. Todo mundo tem alguém que se incomoda com o seu sucesso, tinha uma pessoa assim na minha vida. Eu estava numa festa dançando, todo mundo olhando para mim, ela ficou muito incomodada e foi embora do lugar. Pensei então em fazer um hino para essa situação — conta Anitta, que diz (numa explicação que soa um tanto como provocação a supostas inimigas) por que não usou palavras como “inimiga” na letra. — Costumo não usar gíria porque elas ficam obsoletas. E a música não pode ficar obsoleta. Músicas da Jovem Guarda que tinham palavras como broto, mesmo com arranjos novos, entregam a idade. Por isso escolhi “invejosa”.

Outros vieram depois, como “Beijinho no ombro” e “Eu sou a diva que você quer copiar”, de Valesca. As duas canções são praticamente um compêndio das provocações que dão conta da relação invejada X invejosa (“Pra ter sucesso, amor, tem que fazer direito”, “O meu sensor de periguete explodiu”, “Do camarote, quase não dá pra te ver”). A cantora explica que há nuances entre os tipos de inimiga — baseadas, digamos, em princípios materiais e imateriais:

— A recalcada não aceita que você seja melhor do que ela nunca, quer ser melhor, mas nunca consegue. Já a invejosa é mais preocupada com o que você tem — diferencia Valesca, que diz tratar todas a partir do mesmo princípio. — O que sempre digo é: se ficar puta, é pior.

A reincidência da personagem, na visão de Fred Coelho (professor de literatura e artes cênicas da PUC-Rio, colunista do GLOBO e observador atento da dinâmica das ruas), está mais ligada à “incorporação de uma gíria contemporânea por parte de cantores e compositores do que propriamente um fenômeno ligado à mudanças de comportamento”. Para ele, é uma espécie de outro lado da moeda do discurso da ostentação.

— O funk brasileiro, de certa forma, usa muito da retórica do rap, aquela que marca a diferença com o outro pela ostentação do sucesso pessoal. Ser bem-sucedido, nessa retórica, geraria inveja, recalque, e certamente criaria inimigos. O fato de mulheres utilizarem esse termo mostra uma fala contemporânea, ligada nas gírias que circulam na cidade, e que demarcam os espaços entre quem “chegou lá” e quem prega só a inveja nas redes sociais e nas falações — analisa Coelho, que destaca que essas canções também tangenciam uma espécie de disputa no campo estético. — “Inimigas”, para mim, são homens e mulheres, todos que fazem pouco ou são maledicentes com quem tem sucesso. (Essas canções) parecem mais respostas a comentários concretos contra esse sucesso. E sabemos que cantoras ligadas a gêneros populares como o funk sempre precisam “provar alguma coisa”, ou provar mais do que outras cantoras e cantores que são capazes de existir para além da superfície mercadológica de suas figuras.

Autor de “História sexual da MPB”, o pesquisador Rodrigo Faour conta que a personagem tem poucas referências no cancioneiro brasileiro. Uma das mais emblemáticas é “Duas mulheres e um homem”, de Ciro de Souza e Jorge de Castro, sucesso de Isaurinha Garcia em 1943: “Escute aqui, minha amiga/ Vamos resolver sem briga a nossa situação/ (...) Gostamos do mesmo rapaz/ Uma entre nós é demais/ E a sorte vai decidir”.

— Ela é de certa forma machista, porque o homem é que tem que escolher entre as duas, mas não deixa de ser ousado que uma mulher chegue para a rival com esse discurso — avalia o pesquisador. — “Há um Deus”, que Lupicínio Rodrigues deu a Dalva de Oliveira em 1957, é outra porrada, bem vingativa: “Se eles estão me traindo/ E andam fingindo que é só amizade/ Hão de pagar-me bem caro/Se eu algum dia souber a verdade/ O que fazem comigo, vejam que não é normal, justamente falsa amiga/ Há de ser minha rival”. Em “O meu amor”, que Chico Buarque compôs para a “Ópera do Malandro”, em 1978, duas mulheres cantam juntas o refrão: “Eu sou sua menina, viu (vil)?/ E ele é o meu rapaz/ Meu corpo é testemunha do bem que ele me faz”. Nos anos 1980, o grupo Afrodite Se Quiser fez sucesso com “O que que ela tem que eu não tenho?”, cujo recitativo inicial era hilário: “Como é que você pôde me trocar por essa loura horrorosa?”.

“Quem é”, que Kelly Key canta em seu disco recém-lançado, traz uma dessas situações de disputa feminina num triângulo amoroso. A cantora — que já mandava recados antes, com “Vem na minha”, dos versos “Todas têm um pouco de inveja de mim/ (...) Quando eu estou on-line todos clicam em mim/ (...) Gatinha já é/ Ou vem na minha ou leave me alone” — dirige-se à outra mulher, que “liga na madrugada” para o marido e “manda cartas anônimas”, para dizer a ela coisas como: “A mulher dele sou eu/ Não seja intrometida”.

— Nem é uma música sobre o recalque, especificamente. A própria Alcione canta algumas que remetem a essa figura da outra — cita Kelly.

HUMOR É DESPREZADO

Autora da dissertação “My pussy é o poder. Representação feminina através do funk: identidade, feminismo e indústria cultural”, a pesquisadora e doutoranda em Ciências Sociais Mariana Gomes chama a atenção para a ideia de que a disputa faz parte também do universo masculino das canções:

— Os homens também competem na música, mas isso só virou problema quando as mulheres se tornaram foco. Eles rivalizam em relação ao carro mais caro, no sertanejo e em outros gêneros, disputam mulheres e outras coisas. Acho legal pontuar essa questão, senão fica parecendo que é aquela velha máxima de que “mulheres não são amigas umas das outras”, que só serve pra corroborar estereótipo.

A tentativa de levar a sério a ideia de competição também é criticada pela pesquisadora:

— Existe um elemento do funk que me parece convenientemente ignorado, que é a questão do humor. O tom jocoso, as piadas, o deboche, tudo isso é parte do funk como linguagem. Em um gênero musical que tem o humor como uma das características centrais, por que não o vemos nesse tipo de letra? Por que não encaramos as “inimigas”, as “invejosas” como personagens engraçados, dentro de uma proposta de entretenimento e performance humorística? De acordo com as minhas pesquisas, as funkeiras não veem ali nada além de uma rivalidade performática, que fica ali no palco, onde elas mesmas riem do que é cantado.

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