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Sexta-feira, 17 de maio de 2024

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Violonistas de várias gerações celebram o legado de Garoto na véspera de seu centenário

RIO — Aníbal Augusto Sardinha, o Garoto — mestre em praticamente todas as cordas dedilhadas — chega ao seu centenário de nascimento (São Paulo, 28 de junho de1915) como uma das figuras mais fundamentais da música brasileira. Tendo morrido dias antes de completar 40 anos (Rio, 3 de maio de 1955) deixado pouca coisa gravada em disco, tanto de sua admirável obra de compositor como de seu talento de executante, influenciou a quase totalidade dos violonistas que chegaram depois, de Baden Powell a Yamandu Costa.


— Estou convencido de que, se os compositores e instrumentistas brasileiros tivessem seguido mais de perto o caminho de Garoto, o nível de nossa música seria muito mais alto — garante Yamandu. — Eu me refiro especialmente ao entendimento harmônico, que é o que mais nos encanta. O que mais posso falar de um gênio como ele?

Maurício Carrilho, outro importante violonista, observa que, em geral, as pessoas se referem muito a Garoto como o multi-instrumentista, quando, em sua opinião, ele é bem mais:

— Ele realmente dividiu a história do violão moderno em duas. Acontece que, do instrumentista, não se sabe muito, pelo pouco que deixou gravado. Está no músico, o das invenções melódicas e harmônicas, a sua grandeza. Nisso, foi revolucionário. Todos nós aprendemos com ele, a começar pelo Baden. Se Baden mudou tudo no ritmo, Garoto, que o influenciou, fez o mesmo na melodia e na harmonia.

"SERÁ MAIS CONHECIDO NOS 200 ANOS"

Pedro Aragão, bandolinista e professor de música da UniRio, chama a atenção para um Garoto que brilhou na Rádio Nacional, fazendo arranjos para “Um milhão de melodias” e outros programas, emparceirando-se com o piano e a orquestra de Radamés Gnattali para que os dois firmassem ali a dupla que melhor representa a transição, no Brasil, da música clássica e da música popular para, simplesmente, música.

— Se só agora estamos nos aproximando do Garoto solista, há muito já sabemos do quanto foi gigantesca sua atuação como músico completo — diz Aragão. — Acho um crime não termos acesso aos seus arranjos para orquestra. Onde ele teria chegado se não morresse tão cedo?

A influência de Garoto veio se fazendo aos poucos, depois do quase silêncio que sucedeu à sua morte, de um infarto. Três anos depois, com a bossa nova, caberia a João Gilberto e sua batida diferente apontarem novos rumos para o violão brasileiro (um João Gilberto que apreciava os encadeamentos de Garoto, graças aos quais o acompanhamento ganhava “uma forma que fica mais bonita”). Fato é que, dos contemporâneos de Garoto, com Laurindo de Almeida radicado nos EUA, o que foi mais longe, Luiz Bonfá, também teve de manter um pé na bossa nova. Garoto? Não se falava nele, justamente por ter deixado pouca coisa gravada. Assim mesmo, como acompanhante, participante de programas de rádio, solista de raros ensaios registrados em fita ou acetato. Felizmente, ele foi passando tudo para a pauta, o que acabaria fazendo dele uma espécie de “músico dos músicos”.

A dois nomes deve ele, hoje, uma atualidade que não para de crescer: os violonistas Jorge Mello e Paulo Bellinati. Mello é dono de rico acervo de Garoto, incluindo acetatos e um diário que revela sua intensa atividade, sobretudo nos últimos anos de Rádio Nacional. Em 2012, Mello lançou “Gente humilde — Vida e música de Garoto”, biografia que supera em informação e abrangência a monografia que, 30 anos antes, Irati Antônio e Regina Pereira publicaram pela Funarte.

O papel de Bellinati é outro. Apaixonado pela arte de Garoto, ele próprio virtuoso do violão, lançou internacionalmente em 1991 o CD “The guitar works of Garoto”. Os 24 solos eram acompanhados de dois cadernos de partituras. Essa pesquisa, junto a colecionadores como Ronoel Simões, é trabalho mais que obrigatório para se conhecer Garoto.

— Eu estudei as partituras que o Bellinati reuniu — diz Zé Paulo Becker, um dos melhores violões de sua geração. — É impressionante o pensamento harmônico de Garoto. “Lamentos do morro” é o carro-chefe de todo violonista. “Jorge da Fusa”, os “Choros tristes”, números 1 e 2, é tudo muito moderno. Vejo algo dele em certos acordes do Guinga.

Feliz ao saber da citação de Becker, Guinga ressalta que entre outras virtudes de Garoto estão a coragem de não defender um brasileirismo que, segundo ele, Guinga, limitam o violão e a própria música.

— Ainda ontem eu estava estudando o “Enigmático”, na execução de Raphael (Rabello) e Radamés (Gnattali) — conta Guinga. — É choro feito em tonalidade difícil, si bemol menor, e não sei de outro que tenha ousado fazer o mesmo. Obra-prima. Fica claro que, se quiser crescer como músico, todo violonista tem de ter Garoto no coração. Já houve quem visse nele um precursor da bossa nova. Precursor? Acho que ele foi além. Certamente ouviu muito (Claude) Debussy, do contrário não teria feito “Debussyana”. Estou certo de que Garoto será bem mais conhecido nos seus 200 anos.

É fato que o mestre não foi tão lembrado nos anos logo após sua morte. Na Rádio Nacional, após algum tempo nos EUA, seu nome era a toda hora reverenciado por Zé Menezes, Luiz Bonfá e outros, modernos violonistas que o tinham ouvido. Baden fizera o caminho inverso: primeiro a bossa nova (como acompanhante em canções de Dolores Duran) e depois o samba (como solista de obras suas). Pois é de Baden uma das principais memórias que começaram a trazer Garoto de volta. Pelos elogios ou por entregar para Vinicius de Moraes letrar a melodia de “Gente humilde”.

Na Rádio Nacional, Garoto produziu muito. Fez dupla com a pianista Carolina Cardoso de Menezes, esteve sempre perto de Radamés Gnattali, de cujo “Concertino para violão e orquestra” seria o primeiro executante, além de acompanhar todos os cantores, fazer arranjos e integrar (ele no violão, Chiquinho no acordeom e Fafá Lemos no violino) o Trio Surdina. Foi o trio que lançou em disco, cantado por Fafá, o samba-canção “Duas contas”, por muito tempo a música mais conhecida de Garoto (curiosamente, seu único sucesso popular na época foi um dobrado em parceria com Chiquinho: “São Paulo quatrocentão”).

SHOWS E DISCO CELEBRAM EFEMÉRIDE

A história de Garoto — não só o que dominava o violão, o banjo, o bandolim, o cavaquinho, o violão tenor, mas o músico completo — começa cedo: aos 6 anos, é apresentado ao banjo pelo irmão Batista; aos 10, toca no grupo dos irmãos Armanis; aos 12, já como Garoto do Banjo, anima bailes. Seus estudos formais só vão ter início aos 22. Nos dez anos que antecedem os primeiros contatos com o pentagrama, Garoto ganha fama de gênio precoce. Toca na rádio, faz dupla com o violonista Serelepe, gravando com ele o primeiro disco. Além disso, excursiona como acompanhante de Sílvio Caldas, no Brasil, e de Carlos Gardel, na Argentina.

A principal experiência internacional de Garoto deu-se nos EUA, para onde foi, guiado pelo parceiro Laurindo de Almeida, a fim de se juntar à trupe de Carmen Miranda. Dos oito meses que passou por lá, trouxe elementos que enriqueceram sua técnica. Ouviu muito jazz, experimentou harmonias, conheceu notáveis músicos e voltou de vez (possivelmente pelo receio de que, casado com uma negra, Dugenir de Castro, os dois pudessem sofrer preconceitos).

As homenagens a Garoto vão acontecendo até dezembro, em shows, recitais, concertos. No Centro de Referência da Música Carioca Arthur da Távola, na Casa do Choro, no Clube de Choro de Brasília, no Clube do Choro de Santos, na Caixa Cultural em São Paulo. Em CD, há o projeto do Terno Carioca, grupo formado por Luiz Flávio Alcofra (violão), Lena Verani (clarinete) e Pedro Aragão (bandolim e violão tenor), que se propõe a fazer uma “releitura atualizada” de composições de Garoto, em gravação prevista para agosto. É a nova geração apostando nos 200 anos de que fala Guinga.
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