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Terça-feira, 23 de abril de 2024

Notícias | Literatura

Três livros de poesia erótica apresentam um painel do gênero no Brasil

RIO - “Se três brasileiros estão juntos, estão falando porcaria”, rascunhou Mário de Andrade em um prefácio jamais publicado para o livro “Macunaíma”, em 1926. A verdade retumbante também se aplica à literatura. Se três escritores juntam suas obras, certamente haverá entre elas um excerto erótico. Um poeminha que seja.

— Como o erotismo é uma dimensão fundante da nossa humanidade, é raríssimo encontrar um autor que nunca tenha experimentado a linguagem erótica. A diferença é que a maioria apenas tangencia o tema. Poucos são os que se tornam notórios pornógrafos — afirma a pesquisadora Eliane Robert de Moraes, autora da “Antologia da poesia erótica brasileira” (Ateliê Editorial).

Neste mês, a observação de Mário de Andrade faz ainda mais sentido. Acabam de chegar às lojas justamente três livros “falando porcaria”. O de Eliane faz o primeiro levantamento da nossa história literária erótica, resultado de anos de pesquisa sobre o tema. Estão lá, organizados, desde os primeiros textos sacanas tupiniquins, ecoados da “boca do inferno” de Gregório de Matos, até os mais recentes, cuspidos das gavetas de Arnaldo Antunes. O segundo lançamento é a coletânea “Poesia Vaginal: cem sonnettos sacanas” (Hedra), de Glauco Mattoso, que nesse volume concentra o melhor da sua produção, publicada de maneira esparsa, entre os anos 1990 e 2000. O terceiro livro é “Língua brasa carne flor” (Editora Patuá), estreia literária da cantora Iara Rennó, que — com uma abordagem pop, ou um “lirismo rebolante e sem solenidade”, na definição do prefaciador Xico Sá — chama as palavras para a cama (“o léxico me excita”, diz um dos versos), para um jogo sensorial de poesia concreta, haicai e outras variações.

O HUMOR COMO 'LINHA DE FORÇA'

Depois de vagar pelos recônditos de Marquês de Sade, de ler toda a poesia pornográfica surrealista, de traduzir textos de Georges Bataille sobre o erotismo, a professora de Literatura Brasileira da USP Eliane Robert Moraes seguia com um desejo acadêmico reprimido: “E o Brasil?” O estopim para o início da pesquisa que resultaria nesta “Antologia da poesia erótica brasileira” foi o ruidoso lançamento de “O caderno rosa de Lory Lamby”, de Hilda Hilst, em 1990.

— Percebi que era preciso organizar a nossa poesia erótica, que existia, era latente, mas desorganizada — comenta Eliane. — Meu critério foi reunir tanto o cânone quanto o marginal. Há poesias eróticas de Castro Alves, João Cabral de Melo Neto, Vinicius de Moraes, Murilo Mendes, mas também há obras desconhecidas como “O álbum da rapaziada”, de Francisco M. Barreto, do início do século XIX, ou de Múcio Teixeira.

Durante a pesquisa, Eliane notou que uma das principais “linhas de força” da poesia erótica brasileira é o humor.

— De Gregório de Matos a Glauco Mattoso, as ordens do riso e da brincadeira são predominantes. Esta é a tradição criada pela nossa poesia erótica: o humor. O que indica também a maneira como um foi lendo o outro, como uma geração foi assimilando a anterior — observa ela, citando dois exemplos: o mote do poema “O homem mais a mulher”, atribuído a Gregório de Matos (1623-1696): “O cono é fortaleza/ O caralho é capitão/ Os culhões são bombardeiros/O pentelho é o murrão”; e outro, do Barão de Itararé (1895-1971): “Na França, pescoço é cou/(como tudo anda a esmo!)/No Japão, Ku é ministro/No Brasil, cu é cu mesmo...”

DIVERSIDADE É PALAVRA DE ORDEM

Foi no Modernismo que essa poesia sofreu o primeiro impacto estético:

— Toda a intenção moderna de incorporar o português falado na escrita afeta o erotismo. Os anos 1960 foram outro momento importante, durante a revolução sexual; e outro, mais recente, foi nos anos 80, quando a Aids entrou no vocabulário sexual, e quando surgiram mais autoras mulheres.

A produção atual, avalia Eliane, é bastante rica:

— Apesar de uma certa banalização do sexo, a produção hoje em dia é muito diversificada, e o próprio termo “diversidade” é uma palavra de ordem. A forma hoje se volta muito para a prosa, há uma ruptura com o gênero formal. E as metáforas já vão muito além dos excessos “florais” do século XIX. Haja flor para falar do órgão sexual feminino!

SURUBA EM CEM SONETOS

Poeta profícuo, pornógrafo convicto e podólatra orgulhoso, Glauco Mattoso começou a escrever para se curar de um trauma. Abusado na infância — não por adultos, repete sempre que pode, mas por meninos da sua idade —, ele tem uma coleção de sonetos eróticos que conta mais de três mil textos. Neste “Poesia vaginal: cem sonnettos sacanas”, reuniu os que considera mais representativos de todas as fases de sua escrita, que vai dos anos 1990 a 2000. A ideia de publicá-los em uma coletânea surgiu depois do sucesso do best-seller “50 tons de cinza” há cerca de três anos. Apesar de torcer o nariz para a trama, considera positivo que o livro tenha retomado o “interesse sexual editorial”.

— Há muitos escritores que experimentam o erotismo de maneira diletante, mas poucos são os que levam o tema em toda a sua obra. Fenômenos como o de “50 tons...” mostram que ainda há muita onda para surfar por aí — provoca Glauco. — O departamento “SM” (refere-se à trama, que explora o sadomasoquismo da protagonista) é só um dos muitos que existem... Ainda há uma série de temas que precisam ser tratados, e que ainda são tabus. A literatura erótica ainda é muito moralista. Meu interesse é abranger a sexualidade não convencional. Anarquizar.

'O livro reúne todos os personagens de uma suruba poética possível: a “nympheta”, o “corno assumido”, a “mulher damnada”, o “cliente exigente”, a “esporrada desforrada”, o “molhadaço em palha d’aço”, o “trovador provocador”. Autor de estilo inconfundível, Glauco assume a ortografia do português barroco e a forma do soneto — ou “sonnetto”, como prefere. Outro traço é sua forma particular de explorar os sentidos como o tato ou o olfato, dada sua deficiência visual. Como em “Sonneto sobre o beijo mais íntimo”: “(...) Por isso o sexo oral é sempre sujo:/si a bocca está em contacto com aquillo/ que fede, o odor a eguala ao dicto cujo”.

— A ortografia é uma picuinha política e estética: todas as reformas ortográficas pelas quais passamos foram obrigatórias. E acho mesmo mais bonito as palavras rebuscadas. Sobre os sonetos, é um vício: eu não consigo mais me render ao verso livre — comenta Glauco. — Eu compensei a perda da visão com o ganho do orgasmo masturbatório e depois com a literatura. Foi natural que o olfato sobressaísse nos meus textos, e também por ter a ver com as taras mais periféricas, como a podolatria, a coprofilia.

PEGADA DO AMOR SENSORIAL

Começa pelo amor. Foi um “incidente amoroso” que detonou em Iara Rennó o poema que abre o “Tomo primeiro — Pequeno diário do amor em carne viva”, primeira parte de “Língua brasa carne flor” (Patuá) — o lançamento é dia 30, na Comuna. Mas não o amor como abstração, porém convertido em tato, paladar, audição, visão, olfato (“toco meu seio esquerdo que se entumece/ por onde andará quem já não aparece?”).

— É o erotismo pensando essa parte do amor que se desloca do sentimental para o sensorial — explica Iara, que lembra que “afinal, Eros é o deus do amor”.

Poeta estreante (ela tem uma carreira como cantora e compositora), Iara não planejou escrever um livro de versos eróticos — tampouco tinha referências no gênero. Mas conta que, já nesse primeiro poema, teve essa consciência.

— Depois do “Diário”, caí na “Língua” — diz, referindo-se à segunda parte. — São poemas que têm uma coisa de brincadeira com a sensualidade das palavras. O verso “O léxico me excita” resume isso, essa aliteração do “x”, que é a do “sexo”. O sexo está na palavras, na língua.

Há exemplos da abordagem a que Iara se refere em versos como “pura poesia, Mallarmé?/ só putaria/ a melar-me” ou “põe minha boca na sua/ põe minha mão tira a roupa/ põe minha xota na língua/ e me declama todinha”. A exploração da excitação sensorial pelas palavras segue em momentos como o “Tomo (no) quarto — Tratado da perseguida”, no qual ela se diverte com as possibilidades das palavras usadas para chamar o órgão feminino: “A vulva envolve/ sorve em goles”; “a vagina/ de virgínia/ foi-se embora/ com o et de varginha”. No “Tomo sexto — hai cai de boca”, ela passeia pela poesia japonesa de três versos (“orvalho da laranjeira/ gota a gota/ goza a tarde inteira”). Uma liberdade formal que veio também de um desligamento total da tradição da poesia erótica.

— Quando escrevi o livro, não tinha lido nada de poesia erótica. Só depois fui procurar a obra erótica de Drummond, Hilda Hilst, o “História do olho” (de Georges Bataille, citado no prefácio do livro por Xico Sá, que define “Língua brasa carne flor” como um livro “sem aquela arrogância literária que empata a foda e o verso”). Minhas referências são mais da poesia concreta, de Manoel de Barros, de filmes como “Morte em Veneza”, de Visconti, que é muito erótico sem ter qualquer cena de sexo.

“ANTOLOGIA DA POESIA ERÓTICA BRASILEIRA”

Autora: Eliane Robert Moraes

Editora: Ateliê Editorial

Quanto: R$ 82

“POESIA VAGINAL — CEM SONNETTOS SACANAS”

Autor: Glauco Mattoso

Editora: Hedra

Quanto: R$ 50,90

“LÍNGUA BRASA CARNE FLOR”

Autora: Iara Rennó

Editora: Patuá

Quanto: R$ 36
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