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Notícias / Música

Quase cinquentão, Marcelo D2 amansa mas continua gostando de causar desconforto

Revista Trip

Marcelo D2 mostra a foto de Chico Science que postara em seu perfil no Instagram, o telefone toca. Era a mulher, se despedindo rumo a uma viagem para a Flórida. Pede que a produtora compre água. A voz rouca dá sinais do show do dia anterior tal como apareceu em 2010, na gravação do álbum com a obra de Bezerra, no qual cantava. Aponta, no computador, a plantação de maconha de uma amiga que serviu de locação para um dos clipes gravados na Califórnia. Um canal de televisão ainda gravaria um mini-documentário e a equipe aguardava pacientemente a nossa entrevista terminar. Os fãs-clientes passavam na porta fechada da loja récem-inaugurada onde fazia sua agenda de imprensa, apontavam para D2, de costas pro vidro. Um manequim às avessas. À venda, mas nem tanto.

Pacientemente, cita o nome de um dos convidados seu novo álbum, Nada pode me parar. Explicativo, diz não só o nome (na verdade, um apelido, Batoré), mas também o grupo original do convidado, Cone Crew Diretoria. Sacio minha curiosidade. “Ah, cara, não, é muito jovem pra mim”, diz, rindo nervoso, aceitando a provocação que faço sobre com qual frequência ele ouve o grupo emergente do rap carioca e da temática cannabis. Coincidência ou renovação natural, o mesmo trilho que D2, junto com seu tutor Skunk, pegou no começo dos anos 90 com a invenção do Planet Hemp. “Mas ao vivo eu gosto, acho legal. Ganho boné, casaco, os moleques lá de casa adoram. Na verdade, eu escuto Cone Crew pra c... por causa deles”, retoma talvez arrendido da declaração anterior. Hoje, Marcelo está a cinco anos de distância de completar 50 anos. O visual street chic não permite essa informação em imagem explícita. Mas a tranquilidade de D2 ao falar uma ou outra coisa mais polêmica, sim. Não é mais o da “lata e sem dó” de “Queimando Tudo”. Suas letras cada vez mais são auto-referenciais.

Até chegar a 2013 e largar um pouco do samba, o rapper já havia largado a ex-banda, seus parceiros B Negão e Black Alien e até os quase-ídolos Racionais MCs. O bode bateu até mesmo com o gênero no qual ele e seu álbum mais recente se enquadram. "'É culpa do governo, é culpa do sistema’. A coisa é maior do que isso. ‘O rap tem que salvar o mundo’. Desculpa, mas não vai ser o rap que vai ajudar nisso, não”, diz sério, sentado no sofá da loja itinerante que carrega seu nome e rosto impresso em skates e brindes promocionais e que está estacionada na Galeria Ouro Fino, do lado oposto da Rua Augusta que abrigou as últimas revelações do rap paulista. “Mas eu acho ótima essa nova fase do rap daqui, sabe qual é, que não precisa mais seguir aquela bíblia, o procedê. De repente, nem é culpa dos Racionais. Mas tinha que ter o carimbo, pedir benção”, diz fazendo menção aos contrapontos Emicida e Criolo.

"Quando fui no Faustão, e até hoje neguinho fala ‘pô, cara, tu foi no Faustão, tá vendido’, é desse desconforto que eu gosto"

Em 2013, o álbum À Procura da Batida Perfeita e a carreira de D2 fazem aniversário: 10 e 20 anos respectivamente. O novo álbum tem quase nada daquilo que consagrou o disco de 2003. “Deve ser porque eu tô velho”, diz encontrando o culpado novamente. À época, o hit era “Qual É”, híbrido de rock, samba e rap. “Demorou um ano pra tocar direito nas rádios”, relembra citando o loteamento das rádios brasileiras. Mas tocou e gerou desconforto. Não nos ouvintes, mas nos Racionais MCs. “Resolvemos, nem me lembra disso”, reclama desgostoso e desleixado quando menciono as ameaças (físicas, inclusive) que teria sofrido do maior grupo do gênero no país, dono de “Voz Ativa”, e que é mencionada (“uma homenagem”, conserta) por D2 nas primeiras estrofes do hit. Antes disso, o riso era menos evasivo quando viu que eu fingia anotar com muita ênfase a sua reclamação de que a loja “serve mais pros amigos beberem do que pra ganhar dinheiro”. “Jornalista da Folha que é assim. Você fala um negócio e pronto. Uma vez disse ‘foda-se o Caetano’, tá ligado? Mas para mudar do assunto que o repórter tava insistindo em relembrar [D2 foi chamado de ‘zé mané’ por Paula Lavigne, então mulher de Caetano, nos bastidores do Video Music Brasil de 2000 após ter furado um compromisso de gravação com Caetano e o rapper disparou contra o cantor em seguidas entrevistas]. Daí, já viu, né?”.

Marcelo costuma respeitar outros nomes da MPB. Fala de Chico Science, de como se assustou com o hardcore do mangue ao vê-lo pela primeira vez na TV, no “Programa Livre”, de Serginho Groismann, no SBT. “Quero uma carreira sólida como as de Jorge Ben, Tim Maia... Sabe quem eu admiro muito? A Marisa Monte. Não participa de movimento, de onda, de hit do verão, tá ligado?”. Voltando da Califórnia, onde gravou os clipes de cada música do novo álbum, ganhou SMS elogioso de Maria Rita. Se sente bem no mainstream. “Quando fui no Faustão, e até hoje neguinho fala ‘pô, cara, tu foi no Faustão, tá vendido’, é desse desconforto que eu gosto. Me sinto confortável desconfortando as pessoas. ‘Não, o rap não pode ir no Faustão’ [imita um hater de voz fina]. Gosto de ir na Globo. Faz parte do jogo”, afirma.

Mesmo assim, D2 parece menos disposto pra jogar do que há 10 anos. Depois de À procura..., lançou mais três álbuns que não repetiram o barulho da primeira mistura de samba e rap. Abandonou um deles, Meu Samba É Assim (“o boi só engorda aos olhos do dono. Viajei na época do lançamento. Fiz uma grande cagada”), mudou de gravadora no outro e homenageou o ídolo e amigo Bezerra da Silva. Sugere estar fluindo naturalmente pelas águas do mercado. Apesar disso, não parece tão fora de cena. Nesse meio tempo, cravou o hit “Desabafo” com o produtor Navebeatz (que viria a produzir quase-sucessos de Emicida e Karol Conká), colou com o Cone Crew, lotou casas de shows com a volta do Planet Hemp, se aproximou da obra de Miles Davis e de figurões como Aloe Blacc e Like (do pouco conhecido Pac Div, trio de rap californiano). Além disso, quer fazer funk um dia. “Eu fiquei impressionado como o funk tá forte aqui em SP... E como tem funk ruim pra c... Não só aqui, no Rio também. Sei lá. De vez em quando me dá vontade de fazer um disco de funk. Acho que vou fazer um disco com o Catra”, especula meio-sério, meio-jocoso.

“Já vinhamos lotando todos os shows, não íamos aceitar tocar pra 200 pessoas no sol” [sobre o festival Lollapalooza]

Quando fala da banda, o ânimo muda. Cita ter voltado a falar com BNegão (“não é como antes”, ele explica. “Mas a gente conversa por mensagem”), é marrento ao lembrar da condição de headliner no festival Lollapalooza (“já vinhamos lotando todos os shows, não íamos aceitar tocar pra 200 pessoas no sol”) e dá outra versão sobre o porquê de Gustavo Black Alien não ter voltado aos palcos com o Planet. Black Alien disse não mais se alinhar com o discurso da banda. “O poeta é bobão, ele escreve por ideologia, não quer saber de grana. Eu sou esse cara aí”, disse em entrevista ao Globo. “Mas ele toca com o Cone Crew, né?”, rebate D2. “O Gustavo, cara, ele é maluco. Não leva muito a sério o que ele fala [risos]. O que eu sei é que ele quis mais grana do que nós poderíamos dar. Tava todo mundo ganhando igual e tiramos a proposta. Resolvemos chamar pra, sei lá, [tirar o] peso na consciência e porra... Ele não quis”, revela para abrandar a situação logo depois. “Mas tá tudo certo. É o que mais brigo e com quem eu mais falo. A gente sempre resolve na hora, sacoé?”.

A entrevista acaba, deixo pra trás meu caderno. “Isso aqui é seu? Depois eu que esqueço das coisas”, se diverte fazendo chacota com a distração careta do repórter. Quando o Planet Hemp acabou, a vontade era não voltar à estaca zero (“vou fazer o que? Virar camelô de novo?”). Em 2010, D2 tinha receio de falar de maconha depois de tanto tempo pregando a causa. Naquele tempo, hesitava ainda sobre uma possível volta do Planet Hemp. Hoje, D2 gasta a energia que sobra fugindo de qualquer polêmica na imprensa que precise de seu aval de maconheiro popstar. “Minha meta tem sido provar que não sou mais um rostinho bonito na música brasileira, que eu tenho talento também. Tô cansado de neguinho explorar minha beleza” [risos].
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