Imprimir

Notícias / Perfil

Por trás das câmeras, sueco ganhador do Oscar e cuiabana viveram história de amor cinematográfica no Pantanal

Da Redação - Isabela Mercuri

A história da cuiabana Maria Graça e do sueco Arne Sucksdorff poderia, facilmente, ser um filme. Mas ela aconteceu por trás das câmeras, nos anos 70, na maior planície inundável do planeta, que, naquela época, ainda era um mistério para todo o mundo. Ela, uma das primeiras mulheres formadas em agronomia no estado, que nunca tinha saído do país. Ele, um cineasta, vencedor de um Oscar e o primeiro a levar o Pantanal para além das fronteiras do Brasil. Os dois, juntos: uma bela história de amor.

Leia também:
Expedição segue os passos de sueco vencedor do Oscar que viveu no Pantanal por 30 anos

O cenário do primeiro encontro foi o famoso ‘Bar do Beto’, reduto dos intelectuais cuiabanos da década. Maria, recém-formada, tinha acabado de sair de uma reunião do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (Crea), e confraternizava com alguns amigos. Arne, em outra mesa, estava com um dos filhos de seu primeiro casamento quando avistou a moça. Foi amor à primeira vista.

“De repente ele levantou e veio falar com meu colega que estava ao meu lado - que pensou que era meu namorado. Ele falou que era fotógrafo e cineasta, e que estava procurando pessoas exóticas para fotografar. Nessa época eu tinha cabelo bem comprido, era puro uma índia”, lembra Maria, que, aos 74 anos, vive no Porto, na casa onde moraram seus pais.

A foto era para a extinta revista ‘Life’, dos Estados Unidos, mas também um pretexto para se aproximar da moça.  No dia seguinte, ela voltou, com sua irmã, ao bar, onde foi fotografada, e foi convidada pelo sueco – 25 anos mais velho - para jantar. “Nessa noite mesmo ele me pediu em casamento”, lembra. “Eu não aceitei. Não sou doida!”.

Após o susto inicial, Arne mostrou-se paciente. Disse que estava de viagem marcada para o Pólo Sul, onde ficaria por seis meses gravando um filme sobre um pesquisador inglês que trabalhou com pinguins (Cry of the Penguins, 1971), e que na volta esperava uma resposta.

O clima da Antártica não esfriou as expectativas do cineasta, que escreveu cartas diariamente para a pretendente cuiabana. Por aqui, ela já tinha se mudado para São Paulo, onde finalmente conseguiu um emprego como agrônoma.

Seis meses depois, como prometido, ele estava de volta. Mas ainda teve que ir em busca da permissão do pai de Maria para que o casamento acontecesse. “Papai era super católico, e ele [Arne] era luterano, já era divorciado... e papai não aceitava”. A solução foi perguntar a opinião do padre do Santuário Nossa Senhora Auxiliadora. Para Arne, não tinha problema. “Eu falo até com o Papa, se precisar”, disse ao pai da amada.

Após a autorização, Arne e Maria se casaram no Rio de Janeiro. De lá, foram para Londres, onde passaram a lua de mel na casa de campo de ninguém menos que o cineasta Stanley Kubrick - que a cuiabana, inclusive,  chegou a conhecer. O destino seguinte foi a Suécia, para que se encontrassem com a família do noivo. Foram três meses de viagem antes da próxima aventura.

O pantanal

Arne no Pantanal (Foto: Reprodução / Folha do Meio Ambiente)

Arne nasceu em 1917. Sua vida artística começou cedo. Em 1947, ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro por ‘Symphony of a City’, e no final dos anos 50 veio para o Brasil pela primeira vez, onde ensinou cinema para jovens (incluindo Glauber Rocha) a convite do governo federal e da Unesco, trabalhou ajudando crianças pobres e fotografou a fauna e a flora do país. Nada estranho que, em 1971, tenha sido convidado pelo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF) para filmar o longa "Mundo à Parte", em quatro episódios: "Os Anos Felizes", "Os Anos na Selva", "Manha de Jacaré" e "O Reino da Selva".

O longa foi gravado no Pantanal, quando Arne e Maria voltaram da Suécia. Foram doze anos de produção, sendo que a cada seis meses, durante a cheia, a equipe tinha que levantar acampamento e voltar para Cuiabá. Enquanto Arne filmava, Maria ajudava a catalogar as plantas e os animais. Este foi o primeiro grande trabalho feito sobre o Pantanal.

Maria segurando o filho no colo (Foto: Rogério Florentino / Olhar Direto)

Os dois viveram em diferentes fazendas, acampados no meio do mato. Tiveram dois filhos, Cláudio e Anders, o animal de estimação era uma ariranha, a principal fonte de alimentação eram as piranhas, e o cineasta não deixava que ninguém caçasse. “Nessa época tinha muito caçador de onça, de jacaré, que vinham do Paraguai, ou mesmo brasileiros, e ele começou a denunciar. Ninguém trabalhava ainda com proteção da natureza, ele foi pioneiro. Aí o pessoal ficava desconfiado: Porque tanto interesse? Porque nós não tínhamos essa cultura de preservar nossa mata. Ele começou a batalhar duro com isso, e foi ameaçado. Deram uns tiros, mas pegou só na caminhonete. Mas isso já foi aqui em Cuiabá”, lembra Maria. Além dos caçadores, Arne também teve problemas com alguns fazendeiros, que achavam que ele estava em Mato Grosso em busca de petróleo.

Outra vida

Maria segurando uma foto dos filhos Cláudio e Anders na Suécia (Foto: Rogério Florentino / Olhar Direto)

Doze anos depois, entre ‘trancos e barrancos’, os dois foram embora do Pantanal. Na Suécia, Arne lançou o filme e também o livro ‘Pantanal: Um Paraíso Perdido’. Na capa, estavam Maria e os animais de estimação, brincando na beira do rio.

No Brasil, a obra seria publicada pela editora Block, que quis modificar a capa. “Porque eles achavam que uma negra ia dar ibope, [que] não ia vender”, lembra. Arne não aceitou. Mudou de editora... Mas não adiantou. No lugar de Maria, a foto de capa era agora de uma jaguatirica. “Eu não ligo pra isso. Eu falei pra ele, meu filho, isso é muito bom pra mim! Quer dizer que eu sou comparada a uma jaguatirica, que eu sou forte... Aí ele se conformou”.

Capa do livro publicado na Suécia e no Brasil (Foto: Reprodução)

Depois de dois anos, o casal voltou para o Brasil, mas passou a viver em Cuiabá, principalmente tentando recuperar uma terra que tinha ganhado, mas que - souberam depois - fazia parte de uma reserva indígena. “Ele lutou pra ver se readquiria. Queria fazer uma reserva biológica, sonhava muito. Falava que ia pegar essas crianças de rua, levar pra lá, que ia construir lá uma escola pros boiadeiros... era um sonhador. Eterno sonhador”.

Muita luta e dinheiro gasto não foram suficientes para resolver o problema. “Ele só se envolveu com isso. Não fazia mais nada. Era só esse sonho dele, que foi levando ele cada vez mais pro abismo”, lembra a esposa. “No mato, ele era uma pessoa completamente diferente. Chegava aqui, caía na depressão, queria consertar o mundo. E ninguém dá conta”.

Anos depois, Arne foi vítima de um derrame cerebral, que o deixou na cadeira de rodas. Com ajuda da embaixada da Suécia, voltou para seu país, onde se tratou por dois anos. Quando voltou para o Brasil, estava de bengalas, mas já vivia acompanhado de um tutor.

Arne (meio da foto, ao lado de Maria) já debilitado (Foto: Rogério Florentino / Olhar Direto)

Um segundo derrame deixou as coisas ainda mais complicadas. Arne foi novamente para seu país natal, de onde nunca mais voltou. Em Estocolmo, viveu por alguns anos em uma vila de idosos, onde tinha à sua disposição médicos, enfermeiras, restaurante, alguém para lavar sua roupa e atividades para se distrair.

O último encontro dele com Maria aconteceu duas semanas antes de sua morte. “Eu fui pra lá, fui eu e Cláudio, meu filho. Quando cheguei, ele [Arne] melhorou 100%. Mas a enfermeira disse: ‘Não se iluda! Ele só melhorou porque ele viu pessoas que ama, mas não tem mais chance de vida'. Nós voltamos [para o Brasil], e em duas semanas ele faleceu”. Maria e seus dois filhos viajaram para a Suécia a convite da Rainha Silvia para acompanhar o velório.

Legado

Grande parte do trabalho pioneiro de Arne e Maria Sucksdorff sobre o Pantanal se encontra, hoje, guardado na Secretaria de Estado de Meio Ambiente (Sema) e no Instituto Memória da Assembleia Legislativa. Maria, no entanto, acredita que não é lhe dada a devida importância. “Geralmente, não se fala que foi ele que abriu o Pantanal pro mundo. É só visto como um sueco, fotógrafo, cineasta, meio fora da realidade... Porque naquela época era assim que era visto: fora da realidade”, finaliza.
Imprimir