De experiências forjamos memórias, e de memórias criamos nossa personalidade e traçamos nossa vida. Experiências, essenciais a todo indivíduo, estimulam nossa massa cinzenta a desenvolver novas percepções a respeito do mundo que nos cerca.
“Aurora” terceiro trabalho da diretora
Kristina Buozyte - diretora da Lituânia visionária e extremamente autoral em seus trabalhos - é um ode as experiências que nos guiam adiante.
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Utilizando-se da abrangente linguagem do cinema, muitos diretores exploraram seus elementos de forma a criar novas experiências para seus espectadores, e muitos buscaram retratar inclusive o processo de busca dessas mesmas experiências.
“Viagens Alucinantes” de
Ken Russel,
“A Montanha Sagrada” de
Alexandre Jodorowski e o recente
“Upstream Color” do matemático
Shane Carruth, são exemplos deste segundo grupo. Preocupados não só em criar a experiência através da manipulação da informação por via da montagem e da edição, estes filmes tem como foco principal a exposição dos processos que indivíduos passam ao sofrerem as mais diversas experiências.
(“Viagens Alucinantes – 1980” “A Montanha Sagrada -1973” “Upstream Color – 2013”)
Considerados por muitos incompreensíveis, estes trabalhos sofrem por exigir um pouco mais de seu espectador. Inventivos, evocam em suas cenas as mais diversas reações, e tentam através dos mais variados simbolismos inserir o espectador na experiência. Desafiando a lógica comum, seus roteiros costumam conter diversas cenas desconexas que confundem o espectador do comum, mas nunca sem propósito.
Lutando não só com a difícil abordagem de sua temática,
“Aurora” luta também com o pequeno espaço e conhecimento do cinema lituano junto ao grande público. Trabalho vencedor de sete prêmios na Europa em
2012 devido à sua direção de arte primorosa e realização cinematográfica singular, o filme permanece inédito no Brasil e conta com poucas exibições em festivais de ficção científica e recantos obscuros da internet. Se já não bastasse a dificuldade em fazer-se visto pelo público, seu caráter surreal o torna alienígena a determinadas plateias.
Acompanhando um grupo de cientistas das mais diversas áreas envolvidos nos estudos da neurociência, o filme traça as experiências de Lukas, um determinado médico ao tentar igualar suas ondas cerebrais as de um paciente em coma. Incógnitos um ao outro, isolam-se em uma revolucionária máquina que equaliza suas ondas cerebrais, interligando suas consciências. Uma vez dentro da cabeça do paciente, Lukas começa uma jornada de descobertas que vai mudar todo o mundo que o cerca e sua percepção de si mesmo.
Envolvido com a imagem do que ele acredita ser o paciente, Lukas inicia um intenso romance com a mulher que intitula o filme, Aurora. Decidido a curá-la, o jovem cientista arrisca sua mente e sua vida, mergulhando nos mais profundos confins mentais de sua amante. A trilha sonora, responsável pela atmosfera perturbadora que envolve as experiências de Lukas, é precisa ao inserir aos poucos sua mente num estado de extrema alerta. Desconfortáveis e inquietos, acabamos tão interessados nas descobertas do estudo quanto aquele que as vive.
Diferente dos arrojos grandiosos Hollywoodianos de
“A Origem” de
Christopher Nolan, ou do fetichista e estilizado “
Sucker Punch” de
Zack Snyder,
“Aurora” poupa efeitos especiais nos cenários e cria espaços minimalistas e repletos de significado com uma cenografia e direção de arte primorosa e delicada. Brincando com os sentidos de seus personagens, e do espectador, o filme instiga sensações e interpretações das mais variadas, enquanto narra silenciosamente a história de amor de dois estranhos. Sem os meios normais de comunicação, Lukas transita como um Voyeur na mente de aurora, tomando o lugar de pessoas de seu passado para compreender os acontecimentos que à levaram ao coma, na busca de salvá-la de seu estado vegetativo.
Criando uma experiência ao retratar a experiência de um homem que executa experiências,
Kristina Buozyte insere mais camadas à complexa estrutura de seu roteiro. Este processo, que aos poucos altera a vida de Lukas, e a maneira como ele percebe o mundo à sua volta, alia-se ao trabalho sombrio de
Mario Jampolskis, ator que entrega uma execução primorosa de um personagem com tantas facetas e rompantes de emoção. Seu trabalho jamais estaria completo se não contasse com a presença da estonteante
Jurga Jutaite, que arranca risos, lágrimas e suspiros com sua Aurora, sempre sedenta por novas sensações e estímulos.
Entregando um trabalho que se sustenta em todos os seus quesitos técnicos, embasado em um roteiro obtuso e bem trabalhado, seu desfecho pode não agradar espectadores sedentos por respostas mais claras. Conclusivo, porém enigmático, os atos finais de Lukas e Aurora forçam o espectador a deixar-se ir pela experiência. Mais interessado no processo do que no resultado do mesmo, “Aurora” é um tributo às experiências transformadoras em nossas vidas, e assim como elas, inesquecível.
*Thales de Mendonça tem 22 anos, estudante de Cinema e Filosofia, trabalha com edição e criação de roteiros em São Paulo. Viciado na sétima arte, não fala de outra coisa senão filmes e seus desdobramentos na sociedade. Chato de carteirinha ama cinema asiático, filmes com banho de sangue e dramalhões pra chorar aos domingos.