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Notícias / Saúde e Beleza

Projeto pioneiro apresenta a terapêutica dos índios Huni Kuin

O Globo

RIO — Espalhado pelo estado do Acre, sul do Amazonas e Peru, o povo indígena Huni Kuin sempre encontrou a cura na natureza, graças à sua estreita ligação com a floresta e seu conhecimento milenar das plantas. Cultivadas em seus jardins medicinais, diferentes espécies tratam enfermidades físicas e espirituais. Soluções naturais que servem tanto para acabar com uma dor de dente quanto para ajudar a se concentrar na pesca e na caça, ou ainda dar um fim à má sorte de homens e cachorros.

Mais de 100 espécies desta terapêutica estão agora apresentadas em textos e imagens no recém-lançado “Una Isi Kayawa — Livro da cura Huni Kuî do Rio Jordão” (Editora Dantes, 260 páginas), organizado pelos pajé Agostinho Manduca Mateus Ika Muru e o etnobotânico Alexandre Quinet, pesquisador do Jardim Botânico do Rio (uma seleção de fotos de Camilla Coutinho feitas para a obras estão na mostra “O sonho que cura”, exibida no Parque Lage). A publicação era um sonho antigo do pajé Manduca, morto em 2011: perpetuar no registro impresso a cultura medicinal do seu povo, antes restrita à transmissão oral. Fruto de um longo processo, que incluiu cinco expedições ao Rio Jordão (Acre), entrevistas com pajés, coletas e catalogação de material botânico, além de residências de tradutores no Rio de Janeiro, o projeto é uma troca inédita de experiências entre o Centro Nacional de Conservação da Flora do Instituto de Pesquisas Jardim Botânico e os Huni Kuin. Incorpora a aplicação da pesquisa técnico-científica do “homem branco” ao conhecimento das culturas tradicionais dos índios.

O registro das plantas da terapêutica indígena segue uma divisão mítica de quatro grupos (Dau, Inani, Inu, Banu). A apresentação das concepções espirituais dos Huni Kuin (também conhecidos como Kaxinawás) é essencial — para eles, não há uma separação clara entre ciência e religião. A aplicação de ervas é acompanhadas por cantos, e o processo de cura envolve uma intrincada relação com os outros seres vivos.

— A ligação do homem com as plantas vem desde os primórdios, quando a busca da cura das doenças estava diretamente relacionada com a crença num poder das potestades na natureza, e, em particular, no mundo vegetal — observa Quinet. — Os sacerdotes foram os mais remotos alquimistas, que guardavam as observações dos usos das plantas medicinais. Culturas tão distintas, como a dos índios Huni Kuin, tinham uma concepção mágica das plantas, sempre relacionadas com os seres encantados da natureza, que compõem a sua visão teogônica do mundo.

No mundo dos Huni Kuin, a influência das divindades pode se manifestar positivamente — no sucesso nas caçadas, por exemplo — ou negativamente — no sofrimento com enfermidades. Parte da cura depende de um comportamento sustentável, já que as relações ecológicas influenciam na saúde dos homens, criando um ciclo de reação e vingança dos espíritos de plantas e animais. Alimentar-se de filhotes e danificá-los durante seu esquartejamento causa problemas de saúde ao caçador. Comer filhote de capivara, por exemplo, pode provocar dores repentinas e epilepsia (doenças tratadas por eles com banhos de folhas de amé maku txakiwã, ou rutaceae na nomenclatura tradicional).

Segundo os organizadores do livro, não há oposição entre o caráter “mágico” do conhecimento Huni Kuin e a abordagem científica convencional: pajés e cientistas operam em níveis de consciência diferentes, mas obtêm o mesmo conhecimento das espécies. Mais do que um aval da botânica ocidental ao conhecimento indígena, entretanto, o projeto é um diálogo entre duas inteligências complementares, opina a editora Anna Dantes.

— Para os Huni Kuin, as plantas são sagradas; é uma visão que se perdeu no Ocidente, mas que permanece nas culturas nativas — explica. — Vejo que, em vários lugares do Ocidente, busca-se recuperar esta conexão com o mundo vegetal, o entendimento de que nós somos a natureza.

Traduzir o complexo conhecimento dos Huni Kuin foi um desafio para a Anna. Em 2008, ela editou o “Gabinete de curiosidades de Domênico Vandelli”, que apresentava o universo do naturalista italiano do século XVIII por um viés mais iluminista. Já a edição do “Livro da cura”, que conta ainda com fotografias de Gabriel Rosa e do artista plástico Ernesto Neto, entre outros, se guia esteticamente pelos cadernos e desenhos dos pajés. Experimenta uma diagramação de janelas e proporções livres e orgânicas, além de usar um papel feito de plástico reciclado, que o torna resistente às condições úmidas da floresta, onde deverá ser distribuído.

— Fomos fiéis ao conceito de “livro vivo” idealizado por Manduca: um instrumento dinâmico, de aprendizado coletivo, que transforma os envolvidos — conta Anna. — As fotos tinham que ajudar o taxonomista a identificar as plantas, mas ao mesmo tempo apresentá-las numa linguagem com a qual os aprendizes de pajé se identificassem. Os Huni Kuin estão sempre atualizando sua cultura, e eles queriam mostrar como o conhecimento da floresta pode ser mais valioso que outros tipos de exploração, como a pecuária.

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