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A vinda do papa faz católicos lançarem seu álbum mais criterioso

Estadão

No princípio era o verbo, discreto e introspectivo, entoado por um coro de fiéis que seguia o organista de boas intenções e quase nenhuma técnica. A Igreja vivia a era dos hinos de louvor. Os grupos de jovens e seus violões vieram nos anos 80 e a música das missas passou a respirar um ar ligeiramente mais moderno. Veio então o fenômeno dos sacerdotes cantores uma década depois, como uma espécie de reação à avassaladora música pop produzida pelos evangélicos, dando aos padres o status de popstars. A vinda ao Brasil de um novo papa que quer se aproximar mais de seu rebanho faz a música da Igreja Católica ensaiar um passo que outros cristãos já dançam de olhos fechados. Mais do que vender milhares de discos, nomes católicos apostam em qualidade de gravação, arranjos criteriosos e interpretação de potencial pop.

A investida que pode abrir a porta a mais artistas católicos de boa vontade e algum talento acaba de ser lançada com o nome de No Coração da Jornada. Um disco religioso com o rosto do Papa Francisco na capa e nomes conhecidos do meio cristão pode ser recebido como uma jogada de gravadora para atrair dízimos em dias de papa no Brasil. Pode ser, mas desta vez alguém resolveu pensar fora da caixa. Gravado no estúdio da MZA Music, do produtor Marco Mazzola (responsável por álbuns de Elis Regina, Raul Seixas, Chico Buarque e Caetano Veloso), o projeto traz arranjos cristãos assinados pelo compositor e pianista Eduardo Souto Neto (de Gal, Ivan Lins, Leila Pinheiro, Djavan, Paulinho da Viola, Gonzaguinha e Luiz Melodia); pelo violoncelista Jaques Morelenbaum (de Jobim, Caetano, Gal e uma lista sem fim); e pelo compositor e pianista mineiro Wagner Tiso.

A lista de convidados não faz exatamente uma revolução religiosa. Fábio de Melo, hoje o maior vendedor de discos entre os cantores de Deus, aparece em várias faixas ao lado de Marcelo Rossi, Reginaldo Manzotti, Juarez de Castro e do grupo Anjos de Resgate. Eles cantam as músicas que serão usadas na missa que o Papa Francisco irá celebrar em sua passagem pelo País, entre os dias 23 e 28 de julho. E aí está o primeiro pulo do gato. Em vez de partir para um álbum convencional, Mazzola apostou em arranjos e arranjadores que não seguissem a secular cartilha das músicas de missa. "Quando comecei a trabalhar no álbum, achei as canções muito lineares, repetitivas", diz Mazzola. A cada novo arranjo fechado, a Igreja precisava aprovar. "Eu passei noites em claro pensando que corria um sério risco em não ser entendido. Mas deu certo, acho que o papa gostou."

Sem nenhuma matéria em jornal ou repercussão em redes sociais, o álbum vendeu 160 mil cópias até agora. Se for colocado ao lado de grandalhões como Caetano Veloso e Gilberto Gil, que faturam hoje algo entre 20 e 30 mil cópias de um novo disco, trata-se de um estrondo. Desde a implosão da indústria fonográfica convencional, só os sertanejos e as religiões ainda vendem discos. Os sertanejos, por um fenômeno pop infindável. As religiões, por um mistério da fé. "Os católicos ainda compram discos porque consideram a pirataria um pecado", diz Adão Messias, dono do selo católico New Music.

O álbum do papa derruba um tijolo da muralha que há séculos faz a música das celebrações católicas seguirem um padrão inquestionável. Ao contrário de outras denominações cristãs que criaram uma tradição musical forte e de grande comunicação com seus rebanhos - vale lembrar que os negros norte-americanos criaram o gênero gospel em suas louvações protestantes e batistas -, os católicos dormiram por anos sobre seus violões. "O desafio é fazermos agora músicas para a liturgia (missa) como se pudessem ser cantadas em shows. Como as pessoas que vão a um teatro ou ao cinema, os fiéis que vão a uma missa querem ser tocados. O ritual precisa ser atraente, precisamos tirar a poeira", diz Padre Fabio de Melo, que vendeu 600 mil cópias apenas de seu último disco.

O tema não é simples. Fazer música para missas requer cuidados especiais. No ato penitencial, por exemplo, um momento de grande introspecção, o espírito não pode ser estimulado a sair pulando em uma micareta. "A criatividade não deve ofuscar a liturgia", diz Fabio de Melo.

É justamente este o ponto que, em algumas opiniões, amarra as celebrações. "Por terem medo (de prejudicar suas missas com música), alguns católicos acabaram ficando para trás", diz Adão Messias, responsável pelo lançamento de outro fenômeno cristão: padre Juarez de Castro.

Secretário da Arquidiocese de São Paulo, responsável pela comunicação da Igreja, Juarez é exemplo da profissionalização pela qual passam os músicos católicos. Seus instrumentistas são nomes experientes, nada caseiros. Os irmãos Jonatas e David Sansão, baterista e tecladista, faziam parte do grupo que recebia convidados no programa de Hebe Camargo. O guitarrista Abel tocou com Roberta Miranda. Mas é no repertório que Juarez dá sua grande invertida. O proselitismo espiritual é trocado por canções que, aparentemente, nada têm de sagradas. Raul Seixas materializa-se com Tente Outra Vez; de Jota Quest tem O Sol; do Legião Urbana, Monte Castelo; e de Roberto Carlos, a mais comportada Luz Divina. Seu quarto disco, prestes a sair, terá Amizade É Tudo, do pagodeiro Tiaguinho. "Viram o padre cantar Monte Castelo uma vez e perguntaram por que ele tinha uma música do Legião no repertório. Poucos sabem que a letra se trata de uma carta de São Paulo aos Coríntios", revela a esperteza bíblica o empresário Adão.

Os artistas e grupos de música evangélica, chamados no Brasil de gospel (tecnicamente nada a ver com o gospel surgido nos EUA no início do século 20 e entoado até hoje nas igrejas do Harlem), usam bem suas liberdade para compor, livres dos conceitos litúrgicos. Movimentam um mercado anual calculado em R$ 1,5 bilhão. Segundo o relatório sobre o mercado brasileiro de música gravada em 2011 da ABPD (Associação Brasileira dos Produtores de Discos), que não separa música católica de gospel, os religiosos movimentaram um total de R$ 18 milhões de CDs e 6,7 milhões de DVDs e Blu Rays. No mercado digital, o crescimento foi de 12,8% e o faturamento anual, de R$ 60,8 milhões. Quando se vê a lista dos dez CDs de melhor desempenho da temporada, os padres mostram que continuam fortes e encabeçam o ranking: Padre Marcelo Rossi, Padre Robson de Oliveira, Padre Fábio e Padre Reginaldo Manzotti.
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