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Segunda-feira, 16 de setembro de 2024

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'Rua das Pretas'

No Centro Histórico, calçadão servia como passagem para mulheres negras: 'não podiam entrar pela frente'

Foto: Reprodução

No Centro Histórico, calçadão servia como passagem para mulheres negras: 'não podiam entrar pela frente'
Antes de ganhar o nome do engenheiro português Ricardo Franco, a Rua do Meio, no Centro Histórico de Cuiabá, era conhecida como Rua das Pretas, onde mulheres negras de descendência africana e escravizadas passavam para acessar os fundos dos casarões dos patrões. A história é (re)contada pela Rota da Ancestralidade, que busca resgatar a memória de povos negros e indígenas que viviam a cidade de antigamente através de um cortejo por sete pontos no Centro Histórico. 


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Um dos responsáveis pela Rota da Ancestralidade, Cristovão Luiz Gonçalves da Silva, se define como um "aprendiz de griô", termo usado para se referir aos indívudos que em África transmitiam as histórias, conhecimentos, mitos e canções de seus povos. Em Cuiabá, Cristovão é uma espécie de guardião do passado negro que foi, literalmente, apagado. 

"​Se era Rua das Pretas, por quê Ricardo Franco? Boa parte das nossas histórias com a ideologia do embraquecimento, vão se apagando, literalmente. Então, quem era Ricardo Franco? Engenheiro, português, branco e militar, simples assim. 'Essas pretas aí, o que tem haver com nosso poderio?'. Apaga, apaga e apagou-se". 

Cristovão explica que as anciãs não podiam entrar nos casarões pela porta da frente e por isso, nas primeiras horas do dia, caminhavam todas juntas em direção aos trabalhos. Fascinado pelas histórias que os becos e ruelas do Centro Histórico guardam entre os casarões construídos com adobe, o aprendiz de griô gosta de imaginar quais conversas as mulheres tinham. 

"Elas vinham pela Rua do Meio para trabalhar, lavar, alimentar e cortar lenha. Elas vinham servir o senhorio. Era por essa rua que grande parte delas passavam. O historiador Carlos Rosa fala que ficou conhecida como Rua das Pretas por causa dessa movimentação que começava muito cedo, quando elas iam trabalhar. A Rua das Pretas era por onde nossas ancestrais passavam para atender a demanda do senhorio. Como você tinha as ruas do Meio, de Cima e de Baixo, a do Meio que tinha essa situação e circustância voltada para essas anciãs de descendência africana". 

Ele faz a mesma reflexão quando pensa em Ana Benedita das Neves, conhecida como "Mãe Preta", que ganhou um busto e virou nome de uma praça no Centro Histórico. A lavadeira negra viveu no século 19 e foi ama de leite dos filhos de dezenas de senhores cuiabanos que pertenciam a classe dominante da época. 

"Ela saía e se reunia em frente à Igreja do Rosário com as outras senhoras lavadeiras para lavar roupa no Coxipó. O que me vem a cabeça são as histórias até o Coxipózinho e voltar. Assim como na Rua das Pretas, por onde elas passavam conversando. A Ana Benedita das Neves amamentou muito dos filhos desses senhores, hoje está ali como busto". 
 

Embranquecimento da história do Centro Histórico 

A lenda da "Alavanca de Ouro" enterrada na capela de São Benedito, por exemplo, diz que um garimpeiro que ia para o trabalho encontrou no chão um objeto de tamanho razóavel de ouro, por volta de 1722. A alavanca escapou das mãos dele e caiu no buraco. O garimpeiro, então, passou a cavar às escondidas para tentar encontrá-la. 

Para Cristovão, quando contada dessa forma, a história se torna superficial. Ao se aprofundar, ele explica que é possível descobrir que, no local, negros trabalhavam no garimpo e, constantemente, morriam soterrados na tentativa de encontrar ouro cavando o que ficou conhecido como "buracão". 

"Todo o Morro da Luz, toda a Prainha, era um buraco, tudo isso era o garimpo. Quem trabalhava lá? Os descendentes de africanos. No século 18 você tem aproximadamente 373 escravizados africanos que adentram Cuiabá, então você vê que é um número considerável. Imagina o quanto eles não trouxeram com isso? No entanto, eram eles que estavam trabalhando lá e boa parte deles morava nas terras do Mestre Ignácio, uma das primeiras escolas de música, quase 100 anos atrás". 



As terras do Mestre Ignácio são descritas pelo aprendiz de griô como um "quilombo urbano". "Porque Catedral e Matriz era para a elite, então você só ia trabalhar, você não entrava, não assistia a missa lá, a igreja permitida para você era a de São Benedito, um santo negro. Mas todos esses africanos que estou falando, anciões e descendentes, eram católicos? Não".

De acordo com Cristovão, a partir de histórias que ouviu de griôs como Dona Betinha, que morava em um dos casarios do Largo do Rosário, frequentar a igreja católica era o que "dava alma" e permitia, por exemplo, comprar alforria. 

"Você ganha mobilidade quando você se aproxima da igreja católica, até então tinha uma perspectiva de que você 'ganhava alma', caso contrário, você era desalmado. Quando você é batizado e se aproxima da igreja católica, você ganha mobilidade, você pode trabalhar, pode comprar alforria. Quem contava essa história era a Dona Betinha, era uma moradora a qual os avós contavam essa história do buracão". 

Para Cristovão, rememorar os locais que fazem parte do cortejo da Rota da Ancestralidade e recontar as histórias dos negros e indígenas que ficaram perdidas, como os da etnia Bororó que viviam onde foi construído o Centro Histórico, é uma forma de chamar atenção do Poder Público para a necessidade de reparar a dívida com essas populações. 

"Você vai, por exemplo, apagar Ricardo Franco? Não essa é a diferença, queremos só acrescentar o que é nosso, com muita beleza e graça, para empoderar esses homens e mulheres que tiveram sua parcela de contribuição ontem e continuam tendo hoje. A Rota da Ancestralidade vem fortalecer todas essas histórias". 
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