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Domingo, 28 de abril de 2024

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Cinema de chumbo: a ditadura em foco no jubileu de seu golpe

Arquivo Pessoal

Há meio século atrás, mais precisamente na passagem de 31 de março para 1° de abril de 1964, os militares brasileiros conspiraram contra o presidente Jango, no que chamaram de revolução. Golpearam o Brasil sob o pretexto paranoico de defender a nação dos “trapos vermelhos”. São os eventos ocorridos por trás da cortina, antes mesmo que esta se abrisse, que atraem o olhar do diretor Camilo Tavares em seu documentário O Dia Que Durou 21 Anos, de 2013.

Feito para a TV Brasil e exibido por esta em três partes, o filme teve como roteirista, além do próprio diretor, o jornalista Flavio Tavares, pai de Camilo, que militou contra e sofreu o revezes da ditadura brasileira. Estão registrados ali o Comício da Central, a Marcha da Família com Deus pela Liberdade contra o Comunismo, a posse de Castelo Branco, o AI-5, mas nada chama tanto a atenção neste longa do que a intervenção estadunidense no golpe. O embaixador Lincoln Gordon exerce certo protagonismo.

A pesquisa riquíssima, com documentos e áudios dos próprios americanos, e a linguagem que remete, paradoxalmente, à ficção de investigação policial, fazem do filme oportuno e leve, contrariando, de certa forma, mesmo sendo para TV, a linguagem padrão de documentários que se escora no telejornalismo.

A ditadura é tema comum no cinema brasileiro. O que não imputa necessariamente uma politização ao cinema nacional. A incidência maior se deu depois da Retomada, embora houvessem filmes importantes antes disso como Pra Frente, Brasil (1981) de Roberto Faria e Cabra Marcado Para Morrer (1984) de Eduardo Coutinho. Em 1997, Bruno Barreto dirigiu O qQe É Isso, Companheiro? baseado no livro homônimo de Fernando Gabeira, versando sobre o sequestro do embaixador americano Charles Elbrick em uma ação conjunta do MR-8 e ALN. Se no filme de Camilo Tavares o embaixador americano é o paranoico incitador do golpe, no longa de Barreto o sucessor de Lincoln Gordon é humanizadamente uma vítima, que dá algumas lições pacifistas aos seus jovens subversores. Eis o reflexo do já conhecido conservadorismo que Gabeira abraçou. O conservadorismo é visto de tal forma em O Que É Isso, Companheiro? que os militantes são representados de forma singularmente caricata, o que levou o roteirista Di Moretti a lançar mão de um consultor, para evitar o erro na escrita de Cabra-Cega (2005), dirigido por Toni Veenturi.

O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias (2006) de Cao Hamburger, relata o período da Copa do Mundo de 1970, o ápice do slogan “ame-o ou deixe-o”, sob a ótica de uma criança. O filme teve, inclusive, distribuição da Disney. Em 2007, foi a vez Helvécio Ratton trazer a público o seu Batismo de Sangue, baseado na vida e morte de Frei Tito (Caio Blat). Marighella (2012) de Isa Grinspun Ferraz é um réquiem para o mito da resistência armada brasileira. No ano passado o Dossiê Jango de Paulo Henrique Fontenelle entrega um dossiê cinematográfico focado em João Goulart e levanta a hipótese, um tanto possível, do homicídio do presidente deposto. Este documentário, assim como O Dia Que Durou 21 Anos, também apresenta pesquisa relevante para trazer luz à uma época tão obscura, e o faz.

A direção de arte destes filmes tendem a se assemelhar em torno de uma coloração escura ou sépia. Talvez se trate de um vício do filme de época. Essa concepção de arte é usada para retratar o tempo presente em A Memória Que Me Contam (2013) revela muito sobre a latente decadência dos personagens ali mostrados.

Na trama vários militantes, a maior parte guerrilheiros que resistiram à ditadura, reencontram-se após anos num hospital onde jaz moribunda Ana (Simone Spoladore). Intelectuais, deparam-se com conflitos antigos quanto à legitimidade da resistência armada e sobre a liberdade na arte e no sexo. Aliam-se ao conflito os filhos, uma geração que cresceu longe dos porões dos DOPS e similares.

A diretora Lucia Murat também resistiu à ditadura. Integrou o Movimento Revolucionário 8 de Outubro. Foi torturada, como Flavio Tavares, Frei Tito, e tantos outros. Impossível, portanto, tais experiências não fazerem parte da sua filmografia. Foi lutando que conheceu Vera Silvia Magalhães, única mulher presente no sequestro do embaixador americano, retratado em O Que É Isso, Companheiro?. Falecida em 2007, Vera inspira de forma contundente a personagem Ana. Da mesma forma Irene (Irene Ravache) é uma representação da própria diretora. Outras possíveis referências indicam José Dirceu e o italiano Cesare Battisti.

Os conflitos não ganham a profundidade devida e não parece que seja esta a intenção da diretora. Não intenta nem debater nem mesmo provocar o debate. Muito mais que narrar, Murat descreve e expõe de forma bastante franca o que se tornou a sua geração, com dúvidas que beiram o reacionário e carregam a culpa de terem sobrevivido. Talvez em um filme mais extenso esta ambiência fosse mais facilmente compartilhada.

Das discussões que não se aprofundam a que mais lamento é sobre a liberdade artística, talvez a que receba menos importância no filme. Qual o limite da legitimidade artística? A arte política, como são vários dos filmes supramencionados, com sua funcionalidade, tem a mesma validade das outras artes sem motivações exteriores? Lucia Murat, nem passa perto das respostas, e isso é bom, todavia toda a sua obra parece indicar algo. Ou, faria ela um mea culpa, como fez Eduardo Coutinho, ao afirmar que “o filme militante é uma tragédia”? Coutinho se arrependeu, pois julgou ter sido desonesto artisticamente ao negar o processo “porque já está escrito antes”. Contudo, é um tanto, incoerente usar a mesma régua para todo filme militante, político, se a justificativa de realização não é a propaganda política. Vide a já citada franqueza com que Murat se expõe.

Para todos os efeitos, o cinema brasileiro tem se valido do seu potencial comunicacional e testificado sobre um importante momento histórico do país, e esses registros tem sido de grande valia para contar tal história, enquanto a Comissão Nacional da Verdade ainda engatinha, há quase trinta anos do fim da ditadura e exatos cinquenta do golpe.

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