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Segunda-feira, 29 de abril de 2024

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Certos vícios nunca morrem; Confira coluna pop e cult de Rafa Gomes

Arquivo Pessoal

Já não é surpresa se deparar com um filme oriundo de uma das duplas mais bem-sucedidas de Hollywood. O talento de Leonardo DiCaprio tem sido moldado e aperfeiçoado pelo cineasta Martin Scorsese há mais de 10 anos. O trabalho, começado em 2002, com o aclamado "Gangues de Nova York", teve seu ápice em 2013, com a mais recente obra da dupla, "O Lobo de Wall Street". E mesmo que o timing esteja um pouco fora de foco (o lançamento nacional do filme aconteceu no início deste ano), as questões elencadas por “Wolfie” são válidas, pertinentes e atuais como nunca.

A vontade de tornar real para o público aquilo que outrora figurava a vida de Jordan Belfort, fez parte da imaginação da dupla Scorsese-DiCaprio por sete anos. O projeto estava lá, a concepção de como tudo seria em cena também. Mas ninguém comprava a ideia. Não havia mercado, não havia público, não havia estúdio capaz de assinar a brutalidade, falta de pudor e escárnio que era a vida de Jordan Belfort. Mas ainda bem que vivemos em tempos frenéticos, onde pensamentos mudam, ideias se renovam e opiniões mudam de lado. Após sete anos de espera, Scorsese nos entrega o que seria seu filme mais belo, honesto, gritante, do tipo que samba na cara da sociedade.



Em "O Lobo de Wall Street" entendemos, pela primeira vez, o significado do termo “lobo” nesse território financeiro. Em termos biológicos, essa criatura é uma sobrevivente da Era do Gelo, maior membro selvagem de sua família e um predador voraz. Jordan Belfort é o equivalente humano ao Raio X desse animal: sedento, ávido e caçador. O lobo se adaptou para enfrentar as mudanças globais. Jordan se adaptou para manter seu vício em drogas, mulheres e dinheiro. Saiu ileso o quanto pode, “pagou o preço” (com um certo glamour) e está –– milagrosamente –– vivo para contar toda sua história em sua autobiografia.

Adentrando nas profundezas desse filme, brilhantemente roteirizado por Terence Winter (colega de trabalho de Scorsese na aclamada série da HBO "Boardwalk Empire"), nos deparamos com um universo que foge do nosso limitado imaginário humano. Esqueça tudo que você entende sobre ganancia e vícios. Nada que há na sua mente consegue suprir o que vemos nas três horas de "O Lobo de Wall Street". Martin Scorsese nos leva a um outro nível do que o poder é capaz de fazer ao homem. Não apenas a Jordan Belfort. A qualquer ser humano com a taxa básica de autocontrole que todos, supostamente, temos.

Jordan começa com boas intenções, ansiando apenas pelo dinheiro. Até ai, nada demais. Mas em pouco tempo de filme, o protagonista e o espectador percebem a mudança exigida que o dinheiro e o poder pedem. No universo de Wall Street, para se ter muito, é preciso dar muito. E este “dar” seria o equivalente a entregar sua alma ao diabo. Afinal de contas, tudo tem seu preço, certo? E o desenrolar dessa história é brutal.



O poder torna Belfort refém de seus prazeres a ponto de se tornar vítima deles e todos aqueles que acompanhavam sua brilhante retórica foram juntos. Talvez em níveis menos soberbos, mas foram. E o que dizer dessa mesma retórica? Jordan possui um poder de convencimento assustador e Terence Winter conseguiu extrair a essência da lábia do empresário. E não foi à toa. O roteirista revelou ter assistido minuciosamente, com uma câmera em mãos, o próprio Jordan interpretar um de seus famosos discursos. Ele fez seu dever de casa.

E o tratamento dado à ganância nos leva a um reflexão densa a respeito do comportamento humano em relação ao poder. É difícil inferir com precisão (dado o contexto do filme) se o poder é que corrompe o homem ou contrário, pois estes dois aspectos aparentam caminhar um em direção ao outro, à medida que Jordan toma conhecimento do preço a ser pago pelo sucesso financeiro. Mas a discussão permanece acesa e viva, fazendo com que O Lobo não perca sua atemporalidade tão cedo. Alguns desavisados (por assim dizer) podem refutar o argumento, dizendo - sem qualquer base coerente - que o filme é datado. A década é de 80, mas tais vícios nunca estiveram tão contemporâneos e presentes na nossa sociedade como agora, que respira, transpira e subsiste imersa no consumo desenfreado.

A atmosfera para a qual O Lobo de Wall Street nos leva ainda possui aquele ar natural dos anos 80. Em um território onde todos se parecem, trajados por ternos e pastas de couro, a identidade particular de cada personagem apresentado com um pouquinho mais de destaque pode ficar comprometida. A essência do filme é contemporânea (como mencionado logo mais) e a temática também, mas o estilo é de outrora. Somos direcionados aos anos 80 e a ambientação se dá de forma precisa. Uma vez que a juventude e os maneirismos dessa geração não são tão fortes nos corredores do centro financeiro, o código de vestimenta no associa à década pelos detalhes: as gravatas extravagantes e estampadas, os óculos wayfarer e modelos inspirados na marca Carrera, os blazers com ombreiras volumosas, os tons pastéis, os cortes de cabelo e aquele ar “preppy” e “waspy”, um tipo mauricinho aplicado no personagem Donnie (Jonah Hill).



E o filme não deixa pontas soltas. Nada é informação perdida, desnecessária. Temos três horas de filme que –– garanto –– foram espremidas. A vida de Jordan foi intensa, em todos os níveis. Não existiu meio-termo durante sua ascensão, o que ajuda a dar o tom perfeito à obra. E Marty soube se agarrar a essa intensidade, mantendo o pique da obra o tempo todo elevado. Não há desníveis, onde a história estaciona, para. O ritmo é acelerado e as três horas passam em uma rapidez admirável.

Poucos cineastas são capazes de manejar o período de duração de seu filme. E quando a há muito para ser dito de uma história, todo tempo é valioso. Para tal preciosidade, Winter e Scorsese souberam mesclar bem as cenas. Algumas situações são rápidas, mas de fácil absorção. Já aquelas que demandam um tempo maior são bem desenvolvidas e não cansam nossos olhos e mentes.

Mas pouco valeria toda essa abordagem precisa do cineasta se as atuações ficassem atrás. Para que um filme mereça o status de esplêndido, é fundamental que todos os elementos casem. Roteiro exemplar, direção exímia e o elenco? Scorsese não brinca em serviço e –– como mencionado anteriormente –– essa parceria de mais de 10 anos com Leonardo DiCaprio atinge seu cume mais alto em "O Lobo de Wall Street". A atuação do ator está soberba. Exagerada, terrivelmente cômica e literalmente nua.

DiCaprio não teve medo de sair de qualquer que fosse sua zona de conforto e isso fica muito claro neste filme –– principalmente nas cenas em que ele está absorto nas drogas. Uma indicação ao Oscar nunca fez tanto sentido como esta concebida ao ator. E Jonah Hill não fica de fora. Ele tem surpreendido muito em Hollywood e sua interpretação de Donnie está na linha de equilíbrio perfeita, aquela que precisa existir entre o protagonista e o coadjuvante. Embora Leo chame a atenção pelo extremismo do seu overacting, nem Jonah e nem o elenco de apoio ficam atrás. O nível de excelência permanece intacto.

"O Lobo de Wall Street" é estarrecedor, explosivo, cômico, brutal e divertido. É fortíssimo, cheio de palavrões (F*ck foi usado 506 vezes no total) e não é para qualquer um. A discussão sobre a soberba, ganancia e todos os vícios que acompanham os extremismos de ambos é completamente atual. O vislumbre que temos nas três horas de duração de O Lobo não compõe uma simples memória de uma década que ainda influencia a cultura POP dos tempos contemporâneos. Tanto a abordagem como a temática permanecem ávidas. Relatos de críticos, que acompanharam a transmissão do filme em salas direcionadas para os novos lobinhos do ramo financeiro, foram clínicos ao reafirmar – por parte do público – a veemência e sagacidade deste meio. A realidade pode ser distante do nosso convívio pessoal e profissional, mas nem por isso deixa de ser menos real. Independente de estarmos em 1985 ou 2014, certos vícios e tentações permanecem ilesos ao tempo.

E o filme não é óbvio, como alguns americanos esperavam que fosse. Scorsese não desenha o fato de que o filme condena a vida de Jordan e não a exalta. Os mais desligados julgaram ser uma apologia à ganancia. Mas aqueles que compreenderam a mensagem, percebem que é uma condenação. Ela não é explícita, mas está lá.

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