Olhar Conceito

Domingo, 28 de abril de 2024

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Uma história sobre um rapaz, um velho amigo e uma triste despedida

Arquivo Pessoal

A mão acariciava o pelo macio e marrom, brincando com a orelha ora ou outra; em resposta, o cachorro, deitado sem forças no chão, tentava retribuir o carinho lambendo, quando podia, aquela mão com que praticamente crescera junto. A vida se esvaia lentamente, como um novelo de lã sendo desfeito enquanto a mão da morte puxava sorrindo a ponta do fio. A vida do cachorro era um pequeno emaranhado que quicava sob os últimos suspiros. O coração já se aposentava.

Não se pode dizer que era algo esperado – na semana anterior os dois corriam pela rua de terra, pulavam em poças d’água deixados por uma chuva que brincava de acertar os humanos que andam, sentiam o vento soprar-lhes pela face, o frescor eriçando os pelos, o cansaço tomando os músculos; a água fresca deslizando pela garganta. Treze anos de amizade, e, ainda assim, cada dia era único para ambos.

Às vezes o cachorro sentia falta do rapaz já pela manhã: entrava pela porta semi-aberta do quarto, pulava sobre a cama e deitava ao lado dele, esperando que acordasse. Em geral dormia não muito tempo depois, mas o simples fato de estar perto um do outro já trazia bons sonhos a ambos. Outras vezes, contudo, as patas pisavam sobre o rapaz que dormia, como para checar se ainda respirava e vivia.

A mão do rapaz repousava sobre o peito do cachorro, sentindo o leve bater do coração e a fraca respiração. A tristeza era percebida, e o cachorro continuava a lamber a outra mão, como para dizer que estava tudo bem.

“O que ele tem?”, ele recordava-se da consulta com o veterinário três dias antes, “ele vai ficar bem?”.
A resposta era um olhar sincero de dó; as palavras eram desnecessárias. A alma do rapaz chovera naquela noite sombria.

Os últimos três dias foram cuidando do enfermo; tigelas com comida, água, até leite, para relembrar de quando ainda era filhote e o rapaz, ainda um menino de seis anos, eram servidas com atenção e carinho. As últimas horas, os últimos olhares.

O coração, então, parou. Os olhos se perderam em um vazio escuro, a mão do rapaz repousava sobre um peito sem movimento – o novelo de lã era um fio desenrolado. Treze anos de história terminando com um suspiro solitário, lágrimas caindo sobre um pelo sem reação, o frio transpassando a pele e seu próprio eu.

Após algum tempo e ainda hesitante, o rapaz decidiu deixar o amigo em paz. Levantou-se e começou a andar para longe, sem rumo certo, cabeça baixa. No quinto passo parou; o olhar exigiu um último relance, um último adeus.

Poderia não ter sido um cachorro, poderia não ter sido um rapaz, ou mesmo não uma morte; mas, ainda assim, foi uma despedida – e toda despedida é uma pequena morte de nós mesmos.

*Augusto Iglesias é estudante de Medicina e ora ou outra se atreve a escrever. No anseio de ambas as profissões, vai vivendo o dia a dia. Contato: augusto.iferreira@gmail.com


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