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Domingo, 28 de abril de 2024

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A Cultura do Estupro em tempos de Saias Curtas

Arquivo Pessoal

“As mulheres de hoje não se dão valor”, esta é a frase mais proferida por conservadores machistas. Se roupas curtas determinassem sobre a questão do estupro, a mulher muçulmana que se veste de burca, jamais seria abusada. E, no entanto, é!

Li por esses dias diversos comentários nas redes sociais, um me chamou bastante atenção: “garotinhas fúteis que fazem do seu corpo objeto de desejo, não atraem homens, atraem estupradores!” Fiquei pasmo! Assustei-me sobremaneira com o teor dessa frase. Pois creio ser o corpo objeto de desejo independente de vestir roupas longas ou curtas.

Se roupas curtas são as justificativas para o ato do estupro, alguém me responderia por que crianças e bebês são violentados? E homens que estupram homens? Será a roupa curta? Têm doentes por ai que violentam até animais. Zoofilia é o nome dado a esse tipo de prática. O que leva um homem fazer sexo com um animal violentando-o? Será que porcas e cabritas vestem saia curta?



Precisamos compreender a gênese dos discursos que justificam essa cultura machista que vivemos. Pesa sobre nós brasileiros a influência do judaísmo-cristão. Como descrito em vários trechos da Bíblia vemos como as mulheres eram ‘coisificadas’. Nossa formação cultural machista tem uma relação com a ideia de que a mulher seja uma propriedade do homem, nascida para servi-lo, uma espécie de objeto, um produto que possui um dono.

No Antigo Testamento Bíblico diz:

Se um homem se encontrar com uma moça sem compromisso de casamento e a violentar, e eles forem descobertos, ele pagará ao pai da moça cinquenta peças de prata. Terá que casar-se com a moça, pois a violentou. Jamais poderá divorciar-se dela. (Deuteronômio 22: 28-29)

Assim vemos, a penalidade do estupro recaía sobre a mulher, que além de ser violentada, haveria de casar-se com seu algoz. Aí você vai dizer: "Mas isso é da época da Lei. Hoje não é mais assim." Sim, mas essa "lei" valeu por milênios! Por que deus instituiu essa lei e a deixou valendo por milênios? E por que ele mudou de opinião depois, extinguindo essa lei? A única resposta que tenho, é o fato disso ter contribuído com nossa formação cultural machista.

Na Idade Média nas cidades europeias existia um contingente particularmente grande de mulheres consideradas “disponíveis”. Não eram prostitutas, mas simplesmente mulheres disponíveis a violação, ou seja, o estupro. Mães abandonadas, temporariamente ou não, viúvas, donzelas solteiras, solteiras não donzelas, moças etc. A maioria das mulheres que sofria com esse tipo de crime eram solteiras, contudo, isso não salvava as casadas. Socialmente, essas moças violadas pertenciam às camadas humildes da sociedade: servas, criadas, filhas e esposas de camponeses e assalariados têxteis. A vítima era na maioria das vezes pobre, o estupro tinha penas curtas, multas curtas, não tinha vingança e, naquela época, a honestidade de uma mulher era relacionada com seu status. Ou seja, quanto mais pobre, mais tratada como um simples objeto ou, animal. Essa mulher era, afinal, a esposa de um camponês e não podia querer ter a mesma honestidade da esposa de um burguês. As mulheres eram praticamente “caçadas”. As vítimas preferidas eram as noivas em véspera de casamento, pois havia o doentio pensamento de que o mundo teria uma mulher a menos para uso comum. Vale lembrar que muitas violações eram coletivas, o que torna isso mais nojento ainda. Mulheres separadas do marido também eram tidas como as mais desonestas. Mesmo que o marido tenha dado o consentimento da separação e os pais também. Afinal, os rapazes que caçavam para violar, viam qualquer coisa como desculpa, com o pensamento de que, “se a pessoa era desonesta deveria quase agradecer pelo serviço que os rapazes faziam”. Assim destaca Gabriel Rossi.

Em países em Guerra, soldados costumam cometer menos crimes do que a população de seus países — entre eles, os índices de roubo, agressão e homicídio são bem mais baixos do que a média. Mas existe uma exceção notável: em qualquer lugar do mundo, os militares são acusados de estupro com mais frequência do que os civis. Violentar as mulheres do inimigo é uma prática de humilhação dos derrotados. As guerras são recheadas de casos de agressões sexuais. Esse tipo de agressão tem muito pouco a ver com desejo sexual. E não é nem preciso ser regra em qualquer conflito. Durante os problemas na Líbia, surgiram relatos de que o presidente Muamar Kadaffi distribuía Viagra a seus homens, que eram estimulados a agredir adversárias. Poderia parecer mais uma prova de que os estupros sempre aconteceram e vão acontecer. Mas no grupo de rebeldes da mesma Líbia não há nenhum indício de que eles tenham agredido qualquer mulher ou homem. Os motivos podem ser vários. Na Guatemala, grande parte dos casos de agressão queria apavorar grupos indígenas que poderiam aderir às guerrilhas da década de 1980. No Peru, os alvos eram presos sob a acusação de participar de grupos de resistência, com o objetivo de extrair confissões. Em outros casos, as agressões têm o objetivo de “diluir” uma raça ou um povo. Os chamados “campos de estupros” construídos na Bósnia e nos anos 1990 faziam parte de um movimento para engravidar as mulheres e exterminar os grupos étnicos adversários. É claro que não podemos descartar que alguns soldados estejam canalizando seu desejo sexual ou sua raiva contra seus opositores (como os famosos casos de estupro de vietnamitas por americanos). Mas não é realista imaginar que grupos inteiros de jovens sejam capazes de tamanhas atrocidades sem a pressão social e a força do coletivo. Soldados não só são encorajados por superiores a participar de agressões desse tipo ao lado de colegas como temem ser ridicularizados se não o fizer. Assim destaca Michele Leiby é pesquisadora da Universidade do Novo México e estuda a violência contra a mulher durante guerras.

No Brasil, relatos de horror sobre a ditadura estão escondidos no anonimato. Ao lado do depoimento da ex-militante Dilma estão guardados quase mil processos em que companheiros de luta contam com detalhes técnicas de tortura adotadas pelos seus algozes. O depoimento pessoal de Dilma Rousseff, que 30 anos depois de sofrer tortura em Juiz de Fora seria eleita presidente do Brasil, é apenas uma parte num conjunto de 916 peças de horror que estavam até agora esquecidas na última sala do Conselho de Defesa dos Direitos Humanos de Minas Gerais (Conedh-MG), no Edifício Maletta, no Centro de Belo Horizonte. Nesse teatro de barbárie e agonias, não há protagonistas. São histórias de centenas de militantes políticos de Minas torturados na frente de seus bebês, homens casados que se tornaram estéreis por levar choque nos órgãos genitais e mulheres que seriam violadas no anonimato das celas pelos seus algozes. Gilse Cosenza, primeira a ser indenizada: "Ameaçaram pegar minha filha de 4 meses". Outro “método” relatado nas prisões mineiras não envolvia o emprego da violência física. Na verdade, nem precisava. Seu teor era psicológico. Era usada principalmente com mães ou grávidas. Tratava-se de colocar uma criança engatinhando em cima de uma mesa para forçar a “confissão” da torturada. Caso ela não falasse, o torturador avisava que a criança poderia cair. “Manusearam meu corpo, torceram o bico dos meus seios e enfiaram a mão em mim. Um dia, eu estava arrebentada depois de ter sido torturada das 19h até às 5h da manhã quando fui estuprada pelo sargento Leo, da PM”, conta Gilse Westin Cosenza, hoje aos 68 anos, a primeira da lista de 53 pessoas indenizadas pela comissão mineira, em 2002.

A chamada "Comissão da Verdade" foi instalada pela presidente Dilma Rousseff , na presença de ex-presidentes da República e diversas outras autoridades e membros do Poder Judiciário, da Câmara dos Deputados e do Senado. Ela está apurando violações aos direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988, período que inclui a ditadura militar. A comissão deverá colaborar com todas as instâncias do poder público na apuração da violação de direitos humanos, além de enviar aos órgãos públicos competentes todo e qualquer dado que possa auxiliar na identificação de restos mortais de desaparecidos.

Diz estudo feito com a realidade brasileira, no ano de 2012 o número de estupros supera o de homicídios dolosos, diz estudo, dados constam do Anuário Brasileiro de Segurança Pública sobre 2012. Foram 26,1 estupros por 100 mil habitantes; 18,7% a mais que em 2011. O número de estupros registrados no Brasil em 2012 foi maior que o de homicídios dolosos (quando há intenção de matar), segundo dados da 7ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. O anuário é produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que se baseia em informações do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Sistema Nacional de Estatísticas em Segurança Pública (Sinesp), gerido pela Secretaria Nacional de Segurança Pública, ligada ao Ministério da Justiça. De acordo com o anuário, em São Paulo, o país registrou 50.617 casos de estupro em 2012, o que equivale a 26,1 estupros por grupo de 100 mil habitantes – o aumento é de 18,17% em relação a 2011, quando a taxa foi de 22,1 por grupo de 100 mil. O número de homicídios dolosos registrados em 2012 foi de 47.136.



Em todo o Brasil, em 2012, o número de estupros cresceu 18,17%, superando, pela primeira vez, o crescimento de homicídios dolosos, que teve um aumento de 7,9% em relação ao ano anterior. Roraima (52,2%,) e Rondônia (49,0) lideram a lista dos crimes sexuais. Durante todo o ano passado, foram registrados 50,6 mil casos de estupros, que correspondem a 26,1 crimes por grupo de 100 mil habitantes.

Dados da ONU listam os países com maior incidência de estupros em 2010 (os últimos consolidados): EUA (1), com 84.767 casos; África do Sul (2), com algo em torno de 67 mil casos; India (3), com 22.172 casos; Reino Unido (4), 15.934; México (5) 14.993.

No quadro desse conjunto de fatos, percentuais e estatísticas, só resta dizer uma coisa: A causa do estupro está no próprio estuprador! A causa do estupro é o estuprador! Sendo mulher ou não. Com saia curta ou não. Estupros acontecem hoje como acontecia nos tempos do profeta Moisés, como acontecia na Europa da Idade Média com suas mulheres de vestidos longos.

Em tempos de saias curtas, depois de 10, 20, 30 ou 100 anos, qual serás a próxima desculpa como justificativa dos estupradores? A saia curta?

*Reinaldo Marchesi - É professor universitário, mestre em Educação pela UFMT (linha: Cultura, Memória e Teorias em Educação). Pesquisa no campo da Filosofia da Educação. Leitor de Nietzsche, Foucault, Deleuze e Derrida [Os malditos da filosofia]. Escreve todas às sextas-feiras na coluna Filosofia de Boteco.

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