Olhar Conceito

Domingo, 28 de abril de 2024

Colunas

Uma história sobre um rapaz, uma cena e um fino cubo de vidro

Arquivo Pessoal

Vivo rodeado por um fino cubo de vidro, transparente, sem portas e sem chave. Está sempre em minha volta, acompanhando-me quando ando e nunca me impedindo de fazer minhas atividades do dia a dia. Não chega a ser um incômodo de verdade; ele está sempre lá, e já me acostumei com essa presença silenciosa. Antigamente, quando ele surgiu de repente em um despertar pela manhã, ocorreu-me uma sensação claustrofóbica, senti-me quase desesperado por estar dentro de um pequeno cubo inflexível e me perguntava se seria sempre assim, como seria minha vida com essa barreira, ou mesmo como isso havia acontecido. Conforme os dias foram se sucedendo, ele começou a moldar-se de acordo com minhas tarefas, a fim de não me limitar muito, mas também estar sempre presente, e as dúvidas foram sendo esquecidas aos poucos.

Certo dia, andando por uma avenida não muito movimentada, a atenção fora desviada por uma rápida cena, perto o suficiente para ver com detalhes, mas igualmente longe para sentir-me seguro. Em poucos segundos, um rapaz ameaçou outro com um faca escondida na manga comprida de um casaco, apenas a ponta afiada da lâmina exposta ao sol, e, falando baixo e apressadamente, ordenou-lhe pelos pertences. O outro puxava celular e carteira rapidamente, entregou-lhe ao rapaz, com que foi embora. Ainda digerindo o que havia acontecido, a vítima olhou-me, ficando assim por um breve tempo incômodo. Dei meia volta e dobrei na primeira rua que surgiu.

O que teria sido certo fazer?

Enquanto me perguntava isso, andando pela rua sem saber para onde ia, tentava ao mesmo tempo distanciar-me o mais rápido possível da cena. Havia sido uma testemunha, poderia ter reagido de forma diferente, e ainda o rapaz ficou a olhar-me de modo inquisidor, procurando uma resposta em alguém que não tinha nenhuma. Uma enorme vontade de desaparecer ia surgindo.

Chegando em casa, tranquei a porta e fiquei no sofá assistindo televisão, a fim de passar o tempo apressadamente sem que pudesse perceber. Os braços prendiam as pernas junto ao corpo. Noticiários passavam palavras vazias, cenas frias e impessoais, retratos do cotidiano direcionados ao espectador ausente do outro lado da tela, o som que surgia sendo apenas para preencher com ruído o silêncio da casa, e a tela luminosa, a escuridão dos pensamentos.

Pode ser que não houvesse um certo – geralmente não há; as ações se dão à base das consequências, sendo o medo desconhecido do que acontecerá no futuro o que irá limitar o que se faz a cada segundo. Ainda assim, aquele olhar perturbador ficava assombrando a memória, como se exigisse uma resposta que não fora feita.

O cubo de vidro permanecia comigo, protegendo-me do mundo externo ameaçador. Se, por um lado, senti-me preso quando surgiu, por outro, sinto-me sem culpa. E, por mais que um dia já tenha pensado em quebrá-lo para libertar-me dessa aparente cela, a desconhecida consequência por tal ato tem me recriminado até hoje.

A hesitação é mais forte do que parece.

*Augusto Iglesias é estudante de Medicina e ora ou outra se atreve a escrever. No anseio de ambas as profissões, vai vivendo o dia a dia. Contato: augusto.iferreira@gmail.com



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