Olhar Conceito

Domingo, 28 de abril de 2024

Colunas

Uma história sobre um retrato branco, uma chuva sem fim e um homem

Reprodução

Na ponta dos dedos, uma garota segurava uma moldura de fotografia, sem muitos entalhes e requintes; era branca e lisa, o que algumas pessoas poderiam categorizar como minimalista, e feita de madeira, o que era percebido quando se olhava pelo espaço vazio onde uma foto seria colocada. Os dedos quase não faziam força para colocar a moldura em frente ao rosto da garota, que o olhava com bastante atenção e, como a moldura não possuía um fundo, era difícil dizer se ela observava o pedaço de madeira branco ou se olhava pelo mundo lá fora.

Chovia torrencialmente lá fora. Pela grande vitrine da loja via-se vultos de carros parados, com pisca-alerta ligado e formando uma grande fila até onde a cortina de chuva deixava ver. As casas do outro lado da rua eram difíceis de distinguir, mal sendo possível saber ao certo de que cor elas eram. Parecia tudo um grande mundo cinza, enevoado por uma gigantesca chuva que ela não se lembrava quando havia começado.

Encostado com as costas na vitrine, uma criança suja e largada às ruas encolhia-se com os joelhos dobrados sobre o peito, permanecendo em uma estreita faixa coberta que a protegia da chuva. Com um cobertor esfarrapado e sujo, tentava abrigar-se contra os respingos da água que se debatiam no chão e o forte vento frio que ameaçava os olhos úmidos. Com o braço esquerdo estendido, a mão segurava uma garrafa de plástico cortada ao meio para que fosse enchida pela chuva, a fim de que tivesse água para beber depois que a tempestade passasse. Seu corpo tremia e encolhia quando o vento batia forte contra o vidro.

Ela conseguia ouvir o vento assobiar por entre frestas. Fazia um som assustador que a preenchia por completo, ecoando dentro de si, rebatendo a cada órgão que encontrava; às vezes o som fino conseguia cortar-lhe a pele, rasgar-lhe os tecidos moles feitos de papel. A cada bater mais forte a sensação era pior, o corte mais profundo, já chegando ao osso…

Uma mão a puxou pelo braço.

– Vamos, filha. – disse a mãe, com óculos escuros, disfarçando olhos vermelhos.

A garota distraiu-se de si por alguns segundos, e, após ouvir sua mãe falar pela segunda vez, foi até uma estante e deixou a moldura branca onde a havia encontrado antes, meio largada e, ao mesmo tempo, meio apresentável para o próximo cliente que a visse, como um convite que já fora lido e que aguarda por novos olhos.

As duas saíram pela porta de vidro, com o sol seco do fim de tarde a incomodá-las. Um carro fora aberto e ligado.

Dentro da loja, o convite entre-aberto ainda mantinha o toque da menina sob a lembrança recente, um toque de tristeza e carregado de emoção que ela não ousaria contar em palavras, e que os olhos já ameaçavam muita história caso fossem levemente inquiridos. Na madeira branca e lisa, todas as cores foram deixadas pelas pontas dos dedos, e a lembrança de um velho sorridente homem preenchia uma foto invisível.

*Augusto Iglesias é estudante de Medicina e ora ou outra se atreve a escrever. No anseio de ambas as profissões, vai vivendo o dia a dia. Contato: augusto.iferreira@gmail.com


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